PEC da Blindagem sobrou no colo dos deputados
A nossa Constituição determina que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são independentes e harmônicos entre si. Cada qual com atribuições que atuam como freios e contrapesos aos demais.
O pêndulo entre eles foi definido pelos brasileiros por meio de plebiscito — presidencialismo ou parlamentarismo — previsto na mesma Constituição. Ganhou o presidencialismo.
A derrota do parlamentarismo não eliminou as prerrogativas do Legislativo. Além de fiscalizar e controlar atos normativos do presidente, como as Medidas Provisórias, é do Congresso a competência para editar leis sobre tributação, distribuição de renda, planos de desenvolvimento e outras políticas essenciais à condução do governo.
Com isso, o presidente precisa articular coalizões para pilotar o Congresso e aplicar o seu programa de governo. O que distingue o presidencialismo do parlamentarismo são os meios, à disposição do presidente, para induzir a cooperação dos parlamentares. O principal deles é o controle da execução do orçamento, utilizado como moeda de troca através da liberação de emendas, cargos e ministérios.
Daí o equilíbrio institucional bem caracterizado por Sérgio Abranches em seu clássico Presidencialismo de Coalizão (2018): enquanto o presidente precisa do Congresso para governar, o Congresso depende do presidente para acessar recursos, o que produz um vínculo político do Legislativo com o Executivo.
Esse equilíbrio se desfez com as Emendas Constitucionais nº 86/2015 e 100/2019 que tornaram obrigatória a execução das emendas individuais e das bancadas estaduais. Os políticos aproveitaram a fragilidade do governo Dilma e ampliaram o acesso a recursos por meio das emendas, distribuídas com escassa fiscalização e segundo interesses paroquiais, sem a mínima relação com a agenda do Executivo.
Isso gerou a imunidade política dos deputados e senadores. Já não precisam que o governo dê certo para que se beneficiem. São premiados pelas obras financiadas pelas "suas" emendas, enquanto o presidente arca com o ônus do subfinanciamento das políticas públicas.
O pêndulo do presidencialismo de coalizão se deslocou. A bufunfa ficou nas mãos dos parlamentares e, para usar esse poder como bem entenderem, faltava apenas afastar o controle jurídico. Aqui é que entra a PEC da Blindagem (3/2021).
Na saída da ditadura, a Constituição fixou uma série de imunidades parlamentares que, na prática, impediu que os políticos fossem investigados por bastante tempo. Mas as imunidades ao menos tinham explicação: o medo de que o Executivo voltasse a ser usado como instrumento de perseguição a parlamentares, como ocorreu após o golpe militar.
À medida que a democracia se estabeleceu, foram criadas leis para coibir o crime de colarinho branco: a Lei de Improbidade (8.429/92), que penaliza em âmbito cível agentes públicos envolvidos em desvios; a Lei de Lavagem de Dinheiro (9.613/98), que criou o COAF; e a Emenda da Imunidade Parlamentar (EC 35/2001), que restringiu a imunidade dos parlamentares, a partir de então sujeitos a processo judicial sem prévia autorização da Casa. O resultado disso foi a imposição de responsabilidade, desta vez “jurídica”, aos deputados e senadores.
Corta para hoje. A PEC da Blindagem, aprovada pela Câmara na semana passada, delimitava que os parlamentares só seriam processados se houvesse prévia autorização e, pior, que isso seria deliberado em votação secreta. Seria o mesmo que proibir a prisão de políticos.
O timing dos deputados não surpreendeu. Afinal, após a ressaca da Lava Jato, as instituições aparentemente voltaram a funcionar. A AGU desmantelou as fraudes do INSS. A PF e o MP atuaram em parceria para revelar o esquema de lavagem de dinheiro do PCC. O STF, na figura do ministro Flávio Dino, ordenou a suspensão das Emendas Pix e a abertura de inquérito pela PF. A delação premiada reapareceu na investigação da tentativa de golpe de Estado.
Em resposta, partidos e movimentos de esquerda foram às ruas no último domingo (21) para rechaçar a PEC da Blindagem e pressionar os membros do Senado, onde ainda seria votada. A ironia é que, via de regra, quem luta contra a corrupção é a oposição. Basta lembrar das lutas dos caras pintadas, contra o Mensalão e pelo impeachment de Dilma Rousseff.
A tomada do orçamento pelo Congresso inverteu essa tendência histórica. Os parlamentares já não precisam do Executivo para ter acesso a dinheiro para roubar. Daí o interesse do Centrão e dos demais deputados de oposição em aprovar a PEC da Blindagem.
Só esqueceram que a luta contra a corrupção é uma pauta transversal às divisões partidárias. A esquerda saiu às ruas, mas a indignação contagiou a sociedade inteira. Resultado: o Senado enterrou a PEC da Blindagem.
Sobrou então para os deputados. Tentaram se livrar de responsabilidade jurídica e, por fim, perderam a imunidade política.
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