A retórica do sludge (lodo): uma análise do discurso de Trump na ONU
No último dia 23 de setembro, o discurso de Donald Trump na Assembleia Geral da ONU causou mais furor no Brasil do que o normal: o chefe do governo dos Estados Unidos revelou a existência de “química” entre ele o presidente Lula. Porém, dada a natureza imprevisível da conduta do presidente norte-americano, fica o alerta: nem o abraço de menos de 40 segundos e tampouco a simpatia vocalizada oferecem sinal de que o fim das sanções ou o início de negociações positivas estejam próximos.
A fala de Trump, no entanto, oferece um convite à reflexão: o que separa os dois tipos de retórica consagrados pelos autores clássicos, a boa retórica e a retórica vazia?
A economista liberal clássica Deirdre McCloskey, que tem tratado a questão desde a década de 1980, ajuda-nos a pensar na resposta. A boa retórica, inspirada na tradição aristotélica, está ancorada em virtudes como honestidade, prudência, dignidade e justiça para descobrir boas razões para convencer; vem acompanhada de uma “fala doce” (sweet talk) voltada para a negociação e persuasão e consenso racional sobre as vantagens das trocas mutuamente benéficas.
A retórica vazia, por seu turno, é a do político de fala dura (hard talk) que se apoia na linguagem do comando, medo, ameaça, distorção da história e manipulação para capturar nossa racionalidade, força de vontade e preferências sociais limitadas. Nesse caso, o alvo não é o consenso baseado em fatos empíricos e proposições racionais, mas fisgar e persuadir pessoas a qualquer preço. Esse segundo significado é o que inspira a presente discussão sobre a fala de Trump.
A novidade é utilizar as lentes da economia comportamental, uma abordagem que integra economia e psicologia, para expandir nossa análise de estratégias populistas. De acordo com essa perspectiva analítica, toda e qualquer avaliação e decisão envolve uma arquitetura de escolha que pode ser modificada por nudge (empurrão que mitiga vieses decisórios ou sludge - lodo, em tradução livre).
Em seu livro Sludge, Cass Sunstein, afirma que o termo é produzido por um arquiteto de escolha que sabe exatamente o que está fazendo. Nesse sentido, o discurso de Trump consiste em uma escolha discursiva desenhada para impedir indivíduos de examinarem e compreenderem as vantagens da cooperação entre as nações, dificultando discussões guiadas pela racionalidade, tolerância e equidade.
A recente fala de Trump na ONU parece empregar mais fortemente três tipos de lodos retóricos. Todos eles colocam barreiras para a avaliação racional dos argumentos porque exploram o pensar rápido, intuitivo e emocional, comumente sujeitos a vieses e erros.
O primeiro deles é a manipulação da aversão à perda. O tom do discurso apela ao medo dos indivíduos e cria moldura falsa para convencer pessoas de que os imigrantes são invasores dos Estados Unidos e países europeus; eles seriam os responsáveis por problemas e perdas como violência, desemprego e outras dificuldades sociais. Essa arquitetura de escolha retórica também promove percepção de ameaças à identidade nacional que capturam corações e mentes para a aprovação e defesa de medidas de prisão e deportação de crianças e adultos sem qualquer relação com ilícitos.
A segunda percepção das falas de Trump advém de proposições que manipulam a nostalgia e saudosismo para enaltecer os Estados Unidos. O discurso propõe metas amplas e vagas para prosperidade que só podem se sustentar, talvez, pelo excesso de confiança da capacidade do chefe de governo colocar o país novamente em um cenário de supremacia absoluta e o único capaz de resolver rapidamente guerras e disputas. Esse apelo emocional contribui para minar a capacidade de avaliação crítica por parte do seu público. Ademais, facilita a disseminação da moldura binária e polarizada dos fatos. Consequentemente, diagnósticos distorcidos e negativos são construídos a partir de “bodes expiatórios”. O governo Biden e a ONU são apresentados como causadores dos problemas porque endossaram o globalismo, o combate radical à mudança climática e a leniência no controle migratório.
Um último lodo retórico se baseia na manipulação das informações dos contextos e repetição de slogans. O elemento mais claro é o argumento de que a mudança climática é uma grande mentira criada por pessoas da ONU, além da alegação de que a organização teria se tornado sem importância e incompetente para resolver problemas reais.
A representação dos fenômenos em termos binários explora uma percepção moralista dos problemas comerciais dos Estados Unidos, descritos como uma nação explorada e saqueada por parceiros externos corruptos e injustos. A moldura discursiva que apela à emoção desestimula a disposição de buscar argumentos racionais em prol do comércio multilateral, sendo os últimos contrários a justificativas morais para a política de elevação de tarifas e impostos protecionistas.
O fato é que os discursos que empregam sludges carregados de apelos ao medo, diagnósticos de ameaças e representações binárias dos fenômenos convencem várias pessoas. Eles são o contrário da boa retórica de McCloskey. Possa a imprensa e a sociedade civil seguir com seus radares ligados e baseados em evidências empíricas para que valores como liberdade política, econômica e religiosa sejam cultivados e criticados por todos aqueles que assim o desejarem, em vez da fala dura e retórica coercitiva daqueles que buscam impor suas preferências tirânicas.
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