opinião

O Recife, de pedra e sonho

Albert Camus esteve no Recife em 1953. E disse: “Esta cidade é a Florença tropical”. Desde que li seu Diário de Viagem, onde está a sentença, que penso sobre o assunto.

Nasci aqui. Vivo aqui. E pretendo morrer aqui. Conheço os cheiros recifenses, as locas recifenses, os verdes intermediários e o azul superior do Recife. Morei junto do mar, defronte da barraca de coco de seu Afonso. E agora tenho como vizinha a Vila Vintém, na margem do Capibaribe. Onde barcos a motor, obedientes às curvas do rio, passeiam pelos bairros unindo a cidade.

Esse convívio, natural e arquitetônico, permitiu-me perceber os ladrilhos do Recife. Que foram sendo alinhados, século a século, por portugueses, holandeses, franceses, judeus, espanhóis. E africanos. Em algumas fachadas, vê-se ainda os desenhos dessa arte. Como se vê, nos terreiros da religiosidade afro-brasileira, a presença sonora da umbanda. Protegida por lei.

Por isso, conto, na memória afetiva, cinco Recifes: o Recife calcáreo do porto; o Recife alegre do Carnaval na Praça do Arsenal; o Recife barroco das igrejas nos bairros de Santo Antônio, São José e Boa Vista; o Recife fluvial das capivaras caminhando vagarosamente sob a reverência de motoristas espantados; e o Recife ecológico que abriga o planeta cerâmico de Francisco Brennand.

Assim, o Recife é feito de terra, água e sonho. Terra antes aristocrática. E, agora, loteada para as classes médias. Multiplicadas em informáticos e publicitários. A água vem de duas fontes. Água doce que chega do Agreste. E água salgada, vinda do Atlântico, banhando o continente de Porto de Galinhas e o arquipélago de Fernando de Noronha. Águas que se encontram amigavelmente nas costas do Palácio do governo, o Campo das Princesas. E, afinal, sonho.

Aqui, sonha-se dormindo e acordado. Dormindo, no acalanto dos sabiás matinais que sobrevoam mangueiras dos parques de Santana, da Jaqueira e da Tamarineira. Sonha-se acordado, nos metais do frevo, Evocação de Nelson Ferreira, saudade de Antônio Maria.     

O barroco recifense é um testemunho de fé. E de vida. Porque são muitas as igrejas: da Madre de Deus, do Rosário dos Homens Pretos, de São Pedro dos Clérigos. São fartos os pátios: do Terço, da Santa Cruz, do Carmo, do Livramento. E a sinagoga mais antiga das Américas, na rua do Bom Jesus. Cujo ritual foi tolerado pelo espírito aberto do conde Maurício de Nassau. Que governou a província por sete anos. E a impregnou de arte e construção urbana. Como se tivesse aqui passado sete séculos.

No encontro entre sagrado e profano, há a rosa dos ventos. Plantada em cores tropicais por Cícero Dias. Grande mosaico pictórico. Recebendo turistas. E os abraçando na entrada do Porto do Recife. Convite a penetrarem praça adentro. E seguirem na percussão de Naná Vasconcelos. Até às aulas de naves futuras no Porto Digital.

Não pare, não. Avance. Para o Oeste. Onde a mata é preservada. E a arte é modelada. Lá, está o planeta cerâmico de Francisco Brennand. Uma clareira espetacular, improvável. Feita de imaginação e barro cerâmico. Declaração de amor à cultura brasileira. Juntando genes da herança ocidental e pigmentos de fazeres armoriais do Nordeste. Obra de milhares de peças antropomórficas. Inventadas na artesania das mãos tecelãs de Brennand. Hino à invenção no trópico.

Quando aqui esteve para trabalhar, no Diario de Pernambuco, Rubem Braga curtia a brisa do Recife. Numa de suas crônicas, ele escreveu que chegava a parar na rua. Para sentir a brisa mansa que acariciava seu rosto. E que gostaria de poder guardar a brisa recifense num balão. E assim senti-la também quando estivesse longe daqui.
 



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