Caminhos para a paz em Gaza ainda enfrentam impasses políticos e estruturais
Especialistas apontam que reconstrução e governança do território dependem de estabilidade e clareza sobre o futuro da Palestina
As cenas do retorno de reféns israelenses aos seus lares e de prisioneiros palestinos sendo recebidos por seus familiares e amigos reascendeu a esperança por tempos de paz no Oriente Médio após mais de dois anos de conflito. Os reencontros somente foram viabilizados após a assinatura de um acordo de cessar-fogo em Gaza, no Egito, na última segunda-feira. A iniciativa, no entanto, abriu uma fase de transição frágil, marcada por tensões políticas, desafios humanitários e indefinições sobre o futuro do território.
Enquanto o Hamas tenta reafirmar o controle interno e Israel inicia o recuo previsto no acordo, cresce a pressão internacional por uma estrutura de governança que garanta estabilidade e conduza a um processo de paz duradouro. Além disso, a retirada de tropas israelenses do território palestino abriu uma sangrenta disputa entre Hamas e grupos rivais pelo controle da Faixa de Gaza.
Para o colunista da Folha de Pernambuco, o professor e ex-presidente da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) Luiz Otávio Cavalcanti, ainda é cedo para falar em paz consolidada. “É preciso que se trabalhe pela paz, que se continue a construí-la”, afirmou. Ele avalia que o cenário exige ações em duas frentes: uma de curto prazo, para atender à emergência humanitária e restabelecer serviços básicos, e outra de médio prazo, voltada à criação de dois estados, Israel e Palestina. “Ninguém constrói um projeto sem ter em vista o seu objetivo final. O destino chama-se dois estados”, concluiu.
Gestão
A urgência de uma estrutura administrativa efetiva é consenso entre os analistas consultados pela reportagem. O cientista político Augusto Teixeira acredita que o plano de 20 pontos, proposto pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, prevê justamente esse arranjo. “Considera-se que o Hamas não apenas se desarmará, como também não participará da governança do enclave”, explicou. Segundo ele, “um board de tecnocratas palestinos e árabes” seria responsável pela administração, supervisionada por um Conselho da Paz liderado pelo presidente norte-americano Donald Trump e tendo o ex-primeiro-ministro britânico, Tony Blair, como chefe executivo.
Essa proposta, porém, ainda enfrenta obstáculos práticos. “Israel começa o processo de recuo, enquanto o Hamas retoma a atuação em diversas áreas das quais havia sido expulso”, detalhou Teixeira. “Há um descompasso entre o plano e seus pontos, de um lado, e a realidade, de outro”, avaliou.
Luiz Otávio Cavalcanti acrescenta que, nesse contexto, é necessária uma gestão operacional imediata conduzida por atores internacionais. “O estado Palestino, a Autoridade Palestina, hoje não têm capacidade operacional nem viabilidade política para atuar. Então, fica claro para mim que há aí uma transição a ser ocupada pelos atores que estão trabalhando no projeto de construção da paz”, explicou, destacando que esse período de seis a doze meses será decisivo para consolidar uma administração eficaz em Gaza.
Ualid Rabah também destacou que a paz passa por uma administração local. “Qualquer saída que retire dos palestinos a governança de seu próprio território, a sua soberania, não será solução. É preciso ter um estado palestino viável, seguro, próspero, que possa viver em paz e que, fundamentalmente, tenha soberania sobre todo o seu território”, afirmou.
Reconstrução
Enquanto as negociações políticas seguem indefinidas, a reconstrução humanitária de Gaza desponta como prioridade imediata. Augusto Teixeira aponta que a ajuda internacional “já está sendo liberada, para tentar restaurar patamares mínimos de subsistência da população em termos de alimentos e água”. Países do Golfo, segundo ele, devem investir recursos significativos para restabelecer o território.
Mas a reconstrução, segundo o presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), Ualid Rabah, não pode se limitar à infraestrutura. “Gaza precisa ser reconstruída. Mas quem vai pagar essa reconstrução?”, questionou. Para ele, a paz só será possível se houver uma solução política que garanta um estado palestino.
Esperança
Do outro lado do debate, o presidente da Federação Israelita de Pernambuco (Fipe), Boris Berenstein, defende que a estabilidade depende da cooperação entre as partes. “Depois de tanta beligerância, de tantas mortes, acho que agora chegou a consciência — com o apoio dos Estados Unidos, de vários países europeus e também de vários países árabes — de que a paz é melhor para todo mundo”, disse.
Berenstein vê na reconstrução de Gaza uma oportunidade de reaproximação. “A solução prática, futura, é a manutenção de dois Estados — Palestina e Israel —, mas que haja também um acordo de paz e conscientização de que os dois merecem aquele espaço”, afirmou. Segundo ele, a maioria dos habitantes de Gaza “quer a paz” e acredita que uma reconstrução transparente, “sem corrupção, com vigilância sobre os recursos”, é essencial para restaurar a confiança e reduzir a pobreza.
Perspectiva
O historiador Filipe Domingues insere o tema no contexto geopolítico global. Ele lembra que a criação do Estado da Palestina depende de um acordo que resolva questões históricas, fronteiras, Jerusalém, assentamentos e o retorno dos refugiados. “Embora a Palestina já tenha reconhecimento parcial desde 1988, sua soberania real continua limitada pelo controle israelense e pela divisão interna entre Hamas e Autoridade Palestina”, destacou.
Domingues também ressalta que Gaza é uma peça central da geopolítica mundial, pela sua localização estratégica entre o Mediterrâneo e o Canal de Suez e pelas reservas de gás natural. “Além do drama humanitário, potências como Estados Unidos, Irã, Egito, Turquia e União Europeia veem na região uma peça central de influência política, militar e econômica.”
Consenso
Entre os especialistas ouvidos pela reportagem, há consenso quanto à necessidade de avançar para um modelo de dois estados que assegure a coexistência pacífica e a estabilidade regional. As divergências giram em torno da forma como será feita essa construção.
Augusto Teixeira destaca que a consolidação política é condição indispensável para a manutenção do cessar-fogo e para que a reconstrução tenha efeito duradouro, ressaltando a importância do reconhecimento da soberania palestina.
A criação de uma estrutura de governança estável, capaz de garantir segurança, reconstrução e representatividade é vista como condição essencial para que o cessar-fogo se transforme em paz duradoura. O desafio, segundo todos os especialistas, é transformar o atual acordo em um processo contínuo de diálogo, com participação efetiva de palestinos e israelenses e supervisão internacional. “Não é possível antecipar nada, a não ser o fato de que a construção da paz passa por um processo de elaboração de dois estados, com um processo de negociação, com os principais atores envolvidos”, concluiu Teixeira.