Sobrevivente de grave acidente, estudante de medicina enfrenta falta de acessibilidade na UFPE
Após sobreviver a um acidente que o deixou paraplégico, Heberth Santana enfrenta novos desafios dentro da universidade: elevadores quebrados, banheiros inativos e longos trajetos até as salas de aula dificultam a rotina de estudos
Aos 19 anos, passar no curso de Medicina em uma universidade pública era o grande objetivo na vida de Heberth Vinicius Silva de Santana.
Em 2023, após realizar a prova do Enem no Recife, ele resolveu investir todas as fichas nesse sonho: saiu da capital pernambucana, onde morava, e foi até São Paulo para se inscrever nos vestibulares da USP (Universidade de São Paulo) e da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
Heberth só não esperava que, antes mesmo de saber sobre suas duas aprovações — na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por meio do Enem, e no vestibular da Unesp —, estaria em uma sala de cirurgia de um hospital da Grande São Paulo, lutando pela própria vida após sofrer um grave acidente de carro.
No Recife, Rosilda Maria da Silva, mãe de Heberth, enfermeira especializada no tratamento de pacientes com lesões neurológicas e medulares, recebeu a ligação avisando que o filho estava em estado crítico, a mais de dois mil quilômetros de distância de casa.
“Na hora que a notícia chegou, ela estava com um paciente que tinha lesionado a medula após pular de cabeça em uma piscina, e eu estava em São Paulo, também com uma lesão medular”, relembra o jovem. “Foi muito sofrido para ela, porque, como enfermeira da área, já sabia de todos os riscos e de tudo que eu poderia enfrentar”.
Ele conta que a mãe largou tudo para pegar o primeiro avião até São Paulo, sem ao menos saber se o filho ainda estava vivo.
“A enfermeira que falou com a minha mãe no telefone disse que só poderia passar informações sobre o meu estado de saúde se ela estivesse lá. Assim que chegou, o médico ofereceu os pêsames e falou que seria muito difícil eu sobreviver à cirurgia".
O acidente de Heberth aconteceu na rodovia Anchieta, entre São Bernardo do Campo e São Paulo, enquanto ele, o tio e um amigo da família voltavam de uma comemoração organizada para celebrar o bom desempenho do estudante na segunda fase dos vestibulares.
No caminho, o carro foi interceptado por assaltantes e capotou diversas vezes durante a tentativa de fuga feita pelo tio.
“Eu estava com um bom sentimento quanto à prova da Unesp e sabia que tinha feito um bom trabalho. Nesse dia, na volta para casa, estava tão empolgado que não coloquei o cinto de segurança enquanto sentava na parte de trás do carro”, conta.
Foi assim que Heberth quebrou todas as costelas, teve um inchaço cerebral devido ao impacto da batida e lesionou a coluna, resultando em um quadro de paraplegia.
“Fui o último a ser encontrado, porque os bombeiros achavam que não havia mais ninguém no carro, pelo estado totalmente destruído da parte onde fiquei. Fui socorrido com as pernas dobradas atrás do ombro e tive uma parada cardíaca assim que fui colocado na maca. No caminho, fiquei sem oxigenação no cérebro por cerca de 15 minutos, até chegar ao hospital”.
Enquanto se recuperava do procedimento cirúrgico, no qual precisou retirar parte do crânio para impedir que o inchaço no cérebro provocasse sua morte, uma amiga da família lutava para que o sonho do estudante se tornasse realidade.
Mesmo aprovado, ele perdeu a vaga na Unesp por não se apresentar para a matrícula. Mas, no Recife, a amiga conseguiu levar os documentos necessários até a UFPE, e a universidade aceitou a matrícula, seguida de imediato trancamento, até que o jovem pudesse se reabilitar por completo.
“O acidente aconteceu em 16 de dezembro de 2023. Depois disso, foram meses de tratamento intenso e fisioterapia. Como precisei colocar uma prótese grande na cabeça para a reconstrução da parte retirada, fiquei em acompanhamento pela equipe médica durante um ano, em São Paulo. Nesse tempo, eu também não conseguia voltar para o Recife, porque a lesão medular me impedia de ficar sentado por muitas horas em um carro, e a lesão no cérebro me impedia de voar devido à pressão”, explica.
Foram um ano e nove meses até que Heberth conseguisse voltar para a cidade onde nasceu, em setembro deste ano, e finalmente iniciar sua matrícula no curso de Medicina da UFPE.
“Eu estava muito ansioso, porque era o que eu mais queria desde pequeno. Já não aguentava mais ficar em São Paulo sabendo que tinha uma vaga me esperando aqui, no Recife. Não tinha mais unhas para roer!”, brinca.
Para a admissão do novo estudante, feita em caráter excepcional, a universidade realizou um processo administrativo interno, com o reconhecimento de laudos que comprovaram a questão de saúde enfrentada por Heberth, permitindo sua ausência durante a fase intensa do tratamento em São Paulo.
Segundo o aluno, foi preciso criar uma estratégia para que conseguisse a chance de explicar sua situação atípica à instituição.
“Eu tinha nota para ser aprovado pela ampla concorrência. Mas, nesse caso, seria convocado e teria que me apresentar para a matrícula obrigatória — o que não era possível, já que eu ainda estava em São Paulo. Foi quando pensamos em aplicar minha nota para a categoria destinada às cotas para pessoas com deficiência e enviar os documentos médicos comprovando minha impossibilidade de comparecer à matrícula”, destaca.
Acessibilidade
O desafio da matrícula foi apenas o primeiro dos muitos outros que o agora estudante de medicina vem enfrentando no dia a dia no Centro de Ciências da Saúde (CCS) da UFPE.
São problemas técnicos em elevadores que não funcionam, falta de rampas para chegar até as salas de aula e ausência de banheiros com equipamentos de acessibilidade.
“A maior dificuldade, no momento, são os elevadores sociais quebrados, que me impossibilitam de chegar até o andar onde tenho prática de anatomia”, explica. Para conseguir assistir à aula, a universidade havia oferecido a Heberth o elevador de cargas do centro, utilizado para o transporte das peças anatômicas analisadas em sala.
“Esse elevador é usado para transporte de cadáveres, basicamente. Esses cadáveres são conservados em formol, que é uma substância altamente cancerígena. Além disso, essas peças também soltam líquidos tóxicos, e tudo isso fica no elevador fechado. Quando entro, preciso respirar esse ar sem nenhuma proteção”, destaca.
Heberth, no entanto, conta que a alternativa de utilização do elevador de transporte, para remediar o problema do elevador social quebrado, foi desconsiderada pela instituição após suas queixas sobre o risco à saúde oferecido.
O que diz a universidade?
De acordo com a UFPE, o Núcleo de Acessibilidade (Nace) recebeu as reivindicações apresentadas por estudantes relativas ao Centro de Ciências da Saúde e destacou que segue trabalhando em novas melhorias e adaptações para atender às demandas.
Em nota, a instituição informou que havia resolvido o problema do elevador social de acesso ao laboratório de anatomia na última quarta-feira, 15 de outubro.
No entanto, a equipe de reportagem da Folha de Pernambuco esteve no Centro de Ciências da Saúde da UFPE, ao lado de Heberth, na quarta-feira (22), e encontrou o elevador social de acesso ao laboratório de anatomia interditado, com uma placa de “elevador em manutenção”.
No Instagram, Heberth aproveita a visibilidade que vem ganhando para reivindicar novas melhorias aos problemas que enfrenta diariamente.
Em um vídeo, ele destaca a reforma e a volta do funcionamento dos banheiros inativos do CCS, problema que foi resolvido após a viralização de outro vídeo seu, alertando para a falta de banheiros acessíveis no centro.
Apesar do pedido atendido, outras áreas do edifício ainda contam com banheiros desativados ou sem acessórios de acessibilidade.
“Se eu preciso ter uma aula longe do banheiro que eu posso usar, é um trajeto de mais de trinta minutos para ir e voltar. Nesse tempo, me prejudico e perco conteúdo".
Ainda segundo a universidade, nos últimos seis anos foram implementadas “grandes intervenções de acessibilidade física” no Campus Recife, no Centro de Artes e Comunicação (CAC), no Centro de Ciências Exatas e da Natureza (CCEN) e no Centro de Biociências (CB). Nenhuma das melhorias divulgadas pela UFPE, entretanto, inclui o Centro de Ciências da Saúde (CCS), onde Heberth estuda, entre os contemplados pelo projeto de inclusão.