opinião

A nova tributação e o velho dilema federativo

Do evento promovido pelo Grupo de Executivos do Recife – GERE, realizado em setembro de 2025, nasceu a inquietação que dá origem a esta breve reflexão. A palestra do Ministro do STJ, Luiz Alberto Gurgel de Faria, foi um convite a meditar de forma mais profunda sobre os impactos constitucionais da Reforma Tributária, tema que, como o próprio Ministro ressaltou, não se limita a números ou planilhas.

À luz da história, a tributação sempre esteve no centro dos grandes momentos de transformação da humanidade. Longe de ser apenas um instrumento técnico de arrecadação, os impostos carregam consigo um peso simbólico e político que moldou revoluções e redesenhou o poder. Basta lembrar que as revoluções burguesas, a Revolução Francesa e a própria Independência dos Estados Unidos da América tiveram na questão tributária um de seus estopins mais inflamáveis — o famoso “No taxation without representation” se tornou bandeira de libertação.
No Brasil, a história não é diferente. O episódio do Quinto dos Infernos, símbolo da opressão colonial, assim como movimentos de independência e separatistas — entre eles a Inconfidência Mineira e a Revolução Pernambucana de 1817, que buscavam autonomia e justiça fiscal — revelam como a cobrança de tributos foi, repetidas vezes, combustível de rupturas políticas e sociais.

Em diversos momentos, inclusive em golpes de Estado, a pauta tributária foi utilizada como justificativa para mudanças abruptas no poder, servindo tanto como argumento para a libertação quanto como pretexto para o autoritarismo.

Assim, diante desse pano de fundo histórico, é inevitável que uma reforma tributária da envergadura da EC 132/2023 seja analisada não apenas sob o prisma econômico ou quantitativo, mas também à luz dos valores constitucionais que estruturam a República. Afinal, mexer no sistema de arrecadação significa também mexer na forma como o poder é distribuído entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, o que repercute diretamente no pacto federativo, na autonomia dos entes federados e no objetivo fundamental de redução das desigualdades regionais.

Se a tributação é um dos elementos mais sensíveis das relações sociais, de convivência e do próprio contrato social, a Reforma Tributária que entrará em vigor em 2026 precisa ser examinada com altruísmo, zelo e responsabilidade social. A EC 132/2023 promove uma mudança estrutural no modelo de tributação exclusivamente sobre o consumo, substituindo ICMS e ISS pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de caráter nacional e de competência compartilhada entre Estados e Municípios, a ser gerido por um Comitê Gestor composto pelos entes federativos.
 
À primeira vista, a uniformização de alíquotas e a centralização da arrecadação parecem avanços rumo à simplificação e à racionalidade do sistema. Todavia, a LC 214/2025 permite que Municípios e Estados adotem alíquotas diferentes, inclusive superiores à fixada pelo Senado Federal, o que pode gerar um cenário negativo, marcado pela multiplicidade de alíquotas em cada ente federado, mantendo a complexidade do sistema anterior.
Entretanto, sob o ponto de vista constitucional, surgem problemas relevantes, tais como a relação do pacto federativo com a autonomia legislativa dos entes federativos. Isto é, Constituição Federal de 1988 reconhece os Municípios como entes federativos autônomos, com competência própria para instituir e arrecadar tributos como o ISS (art. 156, III). Ao transformar esse imposto em parte de um tributo compartilhado, gerido por um órgão colegiado nacional, a reforma tende a retirar dos municípios a prerrogativa de definir alíquotas menores que as fixadas pelo Senado Federal, bem como dificultará a criação de políticas tributárias locais, que geralmente possuem o intuito de desenvolvimento de arranjos produtivos locais.

Essa alteração não é meramente técnica — ela pode enfraquecer o poder político dos Municípios, reduzindo a capacidade de atrair investimentos por meio de incentivos fiscais e os colocar em uma posição de dependência em relação às decisões colegiadas do Comitê Gestor. Seria legítimo questionar se tal medida não vulnera o pacto federativo, que é cláusula pétrea e, portanto, intocável por emenda constitucional.

Outro ponto de tensão diz respeito à livre iniciativa. A padronização das alíquotas e o fim da “guerra fiscal” podem ter como efeito colateral a diminuição da capacidade dos Municípios e Estados menos desenvolvidos de criar políticas de estímulo econômico e atrair empresas para o seu território - cidades que hoje atraem empresas oferecendo alíquotas menores podem perder essa atratividade. Isso impacta diretamente a competitividade regional e pode produzir um efeito concentrador de investimentos nas regiões mais industrializadas, em desacordo com o objetivo constitucional de redução das desigualdades regionais.

Se por um lado o IBS com base no princípio do destino é mais justo para o consumidor, por outro pode reduzir receitas de Estados produtores e exportadores, é preciso encontrar equilíbrio. O Fundo de Desenvolvimento Regional, previsto na emenda, é uma tentativa de mitigar esse efeito, mas, aparentemente, ainda carece de regulamentação robusta, valor assegurado e critérios transparentes de rateio.

O que está em jogo, portanto, não é apenas a arrecadação ou a simplificação tributária, mas o equilíbrio federativo e a coesão social. A pergunta que se impõe é: será que estamos trocando um sistema complexo por um modelo que, embora, aparentemente mais simples, pode se revelar menos democrático e mais centralizador?

Se a tributação foi, historicamente, um motor de transformações políticas e revoluções, é preciso garantir que essa reforma não se torne, ela própria, um fator de desequilíbrio institucional, comprometendo a autonomia dos entes federados e o desenvolvimento das regiões que mais precisam de incentivo.

A história nos ensina que a tributação sempre foi combustível para grandes transformações políticas — e, em muitos casos, para rupturas sociais e institucionais. Por isso, não podemos tratar a Reforma Tributária como uma mera mudança técnica. Ela redefine quem decide, como decide e para onde vai o dinheiro público. Em outras palavras, redefine o próprio pacto federativo.

Desta feita, para que a sonhada Reforma Tributária não se torne um vetor de desequilíbrio, é imprescindível que a sua implementação seja acompanhada de mecanismos de controle e transparência, não apenas de um simples calendário. O Comitê Gestor do IBS precisa ter suas decisões amplamente publicizadas e submetidas a critérios objetivos, com participação efetiva dos Municípios, sob pena de se tornar um novo polo de centralização fiscal.
 

 

* Professor, advogado e diretor de Relações Acadêmicas do GERE

** Contadora - MBA em contabilidade, Compliance e Direito Tributário

 

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