OPINIÃO

O Agente Secreto e A Primavera: mesmo Recife, formas distintas de ver

Dois Recifes se cruzam nas salas de cinema da cidade. O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, e A Primavera, de Daniel Aragão e Sérgio Bivar, têm a capital pernambucana - com seus personagens, ruas e cultura - como coprotagonista. Mas o que envolve os filmes em si tornou a repercussão e o acesso a cada uma das obras tão contrastantes quanto as próprias desigualdades da cidade em foco.

O Agente, ambientado no Recife de 1977, durante a ditadura militar, está em toda parte: 16 salas de cinema de Pernambuco. O Cinema da Fundaj (Derby e Museu) está com todas as suas sessões dedicadas ao filme. Com custo de produção de R$ 27 milhões (recursos públicos são a maior parte), conta com um elenco estelar – entre os atores, o talentoso e carismático Wagner Moura. A Primavera, por sua vez, tem lutado contra o cancelamento eterno imposto pela classe artística e cutural a um de seus realizadores, Daniel Aragão. Seu pecado mortal foi ter integrado, como diretor de fotografia, a equipe de produção do documentário O Jardim das Aflições (2017), sobre o filósofo Olavo de Carvalho, tão amado pela direita quanto odiado pela esquerda. Esse projeto mudou radicalmente os rumos da carreira de um cineasta em ascensão, e que hoje talvez estivesse na mesma condição de realização e reconhecimento do próprio Kleber ou Gabriel Mascaro.

Se O Agente é puro realismo fantástico recifense, A Primavera é a cidade e as pessoas que vemos todos os dias, nas ruas e becos, em cartões-postais ou lugares pelos quais passamos apressadamente. Ela está toda lá, com sua poesia marginal e vulnerabilidades que vagueiam por ai, sem rumo certo. O elenco estreante, com atores interpretando a si mesmos enquanto poetas marginais, impulsiona o espectador a acreditar e embarcar na jornada.  A bela homenagem a Miró da Muribeca e os ecos de Jomard Muniz de Brito, Francisco Espinhara e Geração Super 8 habilitam o filme a ocupar a prateleira cult, onde está o documentário, também sobre poesia marginal, “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire” (2002), dos jornalistas Pedro Saldanha e Diego Melo.  

A trilha sonora, com Luiz Melodia, Jorge Mautner e Leonard Cohen (considerados “poetas malditos”), vai agradar a quem gosta de música boa, bem garimpada. Ignorar tudo isso, e todos aqueles envolvidos nessa obra do cinema verdadeiramente independente, sem distribuidora, feito com apenas R$ 250 mil (sem recurso público), é silenciar e sufocar, novamente, aquilo que mais grita aos ouvidos e salta aos olhos de quem anda pelas ruas do Recife e de outros centros urbanos. A Primavera entra na terceira semana em cartaz, em apenas uma sala, no Moviemax Rosa e Silva, sessão única, às 16h20. Assista e forme sua própria opinião.

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