Ativismo judicial ou anomalia institucional?
Em recente evento da LIDE, o ministro André Mendonça, na mesma linha de outros analistas, que se põem a opinar sobre decisões, por assim dizer, heterodoxas, do STF, classificou o modus operandi utilizando para tanto como “ativismo judicial”.
Mas será exatamente isso mesmo?
Ao meu ver, a nossa Corte constitucional perdeu o rumo, desde que se inaugurou, em 2019, o chamado “inquérito do fim do mundo”, procedimento teratológico, que perdura, até hoje, sem prazo, sem objeto determinado e sem nexo, a partir do qual a Corte, completamente fora dos limites de sua competência, investiga, acusa, processa e julga, qualquer causa e qualquer um, quando quer e como quer.
Ou seja, o desrespeito à Constituição Federal, cuja guarda, antes de mais nada, cabe-lhe como dever, desde então, foi institucionalizado pelo Supremo, a pretexto de suposta defesa da democracia e de seus próprios integrantes.
Nesse diapasão, o STF está a agir como se lhe fosse possível ir além das normas, para “cumprir missões excepcionais”, que outorga a si mesmo, “combater” pessoas que, no seu pensar, não deveriam estar na política, além de “impedir” a disseminação de ideias e opiniões que, ao seu juízo, não poderiam ser propagadas, posto que, alegadamente, inverídicas ou extremistas.
A Corte tem se dado a participar, cada vez mais, da cena política, como se os seus Ministros fossem líderes partidários, a ponto de comentar acontecimentos em geral, criticar “desafetos”, apoiar o governo (e, por vezes, a ele se fazer substituir), formular políticas públicas, legislar, interferir no parlamento e até opinar sobre a indicação de nomes para o próprio tribunal e outros órgãos.
É claro que esses desvios funcionais vão muito além de “ativismo judicial”, que, em poucas palavras, dá-se quando um juiz, ao julgar o mérito de determinada causa, relativiza a lei, substituindo-a pela sua própria visão de mundo, porém, ao menos, conduz a ação respeitando a própria competência, o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e demais aspectos formais.
Alguém duvida disso?
Se sim, teria como explicar como é possível admitir que um juiz mande investigar e julgue um ex-auxiliar, que o denunciou, por alegados malfeitos funcionais, como no caso de Eduardo Tagliaferro, que apontou uma série de abusos, que teriam sido praticados, justamente, pelo ministro Moraes, que irá julgá-lo, juntamente com os demais integrantes da 2a. Turma do STF?
Ora, em nenhum sistema de justiça, de qualquer país minimamente civilizado, é admissível algo tão evidentemente absurdo, pois, para dizer o mínimo, além da incompetência absoluta da Corte (pois o acusado não tem prerrogativa de foro), há patente conflito de interesses e inegável parcialidade do ministro, que, por óbvio, não pode ser, ao mesmo tempo, denunciado, investigador, acusador, juiz e vítima.
Caso as instituições republicanas estivessem mesmo em regular funcionamento, Tagliaferro não seria processado por denunciar o seu ex-superior e a apuração de sua grave acusação ao ministro estaria sendo exigida pela grande imprensa e pelo parlamento, bem assim investigada por autoridades e instâncias independentes.
O pior é que esse tipo de distorção não é exceção nem se deve ao voluntarismo de um único ministro ou a erros judiciais, que, relacionados a um serviço humano, naturalmente, são passíveis de ocorrer em qualquer ambiente forense.
Pelo contrário, episódios, como o caso de Moraes x Tagliaferro, tornaram-se regra, com o respaldo da maciça maioria da Corte, a exemplo do que está a ocorrer no insólito inquérito do “fim do mundo” e nas ações penais da “trama golpista” e do 08 de janeiro, em que a lei e a Constituição vêm sendo reiteradamente violadas, por atos típicos de tribunais de exceção, onde, com duras violações ao sistema acusatório e aos princípios do juiz natural, da reserva legal, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, acusados são indevidamente presos e excessivamente apenados, advogados têm as suas prerrogativas ignoradas e são tratados como adversários, bem assim críticos da Corte são vistos como inimigos do estado democrático de direito.
Está o STF, portanto, a sofrer de uma grave anomalia institucional, causada pela própria Corte, de uma proporção e grau nunca antes registrados na história do Judiciário brasileiro.
E isso está acontecendo, e se acentuando, sem disfarce, à vista de todos, ora com o incondicional apoio, ora com o silêncio parcimonioso, de grande parte da imprensa, da academia, da OAB nacional, da Procuradoria Geral da República e de quase todos os líderes da classe política, que fingem ver normalidade onde não existe, ofendendo a lógica, o senso de justiça e a inteligência de todos aqueles que, verdadeiramente, querem uma suprema corte estável, impessoal e legalista.
Por tudo isso, é mesmo incrível, e muito desesperançoso, que, apesar desse cenário de “terra arrasada”, ainda haja apoio político- jornalístico, e das elites jurídico-acadêmicas, a esse estado de coisas, assim como não se veja no horizonte nenhum sinal de arrependimento, autocontenção, resistência institucional ou solução possível.
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*Sócio do GCTMA Advogados, Procurador aposentado do Estado de Pernambuco, Conselheiro de Administração/IBGC