Antônio Maria: a tabela da vida (5)
Maria era personagem. Nunca coadjuvante. O corpanzil era mero detalhe. O que lhe valia eram as palavras. Docemente oportunas. Colocadas com o orvalho do adjetivo apropriado. Sem advérbios postiços. As palavras, em Maria, eram perfeita sedução. Por isso, Rubem Braga o queria próximo. E distante. E Samuel Wainer, seu patrão, derrotado, o despediu.
A noite era a grande cena de Maria. De dia, ele era quase invisível. Anoitecendo, ele começava a surgir. Como a estrela vésper. Mas, quando a noite inundava, com seu vasto véu, ruas, céu, bares, boates, corpos e almas, ele chegava. O Menino Grande. Amado. Temido. Sempre admirado. A noite nunca lhe faltou. Não houve dia em que a noite deixasse de cumprir a obrigação diária de, pontualmente, descer sobre Copacabana. E, ali, estava Maria. À espera. Para viver. E amar. Amar. E viver. Compreendendo o outro. Incompreendido, às vezes. Compassivo, toda hora.
As mulheres de sua vida eram hino a sua capacidade de encantar. Eram estandartes de beleza a homenagear seu imenso dom de atraí-las. E, Maria, sócio da noite e condômino do feminino, reinava. Compondo, escrevendo, cantando. Cosendo, com a vocação da madrugada, a falha futura de cansadas coronárias.
Na crônica de 03.08.1957, ele lambeu improvável ferida.
“Era a primeira vez que estava sem ela. No mesmo bar, onde por certo estariam os mesmos amigos, que viriam, um a um, perguntar por ela: Onde está, Fulana ? Nunca se pergunta por uma pessoa que não está. Porque ninguém sabe exatamente de uma pessoa que não está. E, de fato, os amigos vieram e fizeram a pergunta esperada. Respondeu a cada um, com igual sacrifício, que ela não viera, evitando a vaidade de justificar , dizendo, por exemplo, que ela estava mais cansada e preferira dormir. Os homens, de modo geral, não se conformam em apenas confessar que estão sós. Precisam dizer porque estão sós. Parece que apostam entre eles qquem sai mais vezes em companhia das mulheres e, quando um aparece sozinho, perde pontos na tabela da vida”. (...)
Ainda, Maria: “Vaiassem-no, se isto lhes fizesse bem. Mas sem disfarce, de maneira clara e estrepitosa. Levassem os dedos à boca, assoviassem. É assim que se vaia um artista que erra seu número. Mas aí é que estava o engano. Ele não estava fazendo um papel. Ele estava simplesmente vivendo consciente de sua insegurança. O homem quando vive uma verdade intensa e sua, está infinitamente só.”.
E Maria arremata sua verdade. Sem companhia. E com a solidão de três desertos, como dizia nosso conterrâneo, Nelson Rodrigues: “Ela é simplesmente a mulher que não está. E o pianista toca suas canções prediletas, mas tem direito, porque o papel do pianista é comover. O homem só levanta e vai-se embora. Está sofrendo muito, mas desde já lamenta o dia próximo em que irá esquecê-la. Porque, nesse dia, então, verdadeiramente, ele a perderá para sempre.”