OPINIÃO

O colonialismo mental é um ultraje à nossa identidade

Duas cenas recentes me põem em xeque, a respeito de algo que tanto prezo: a nossa identidade. Em primeiro plano, eu conto. Depois, comento.

Cena inicial. Numa escolinha de futebol, onde meu neto ensaia seus primeiros passos neste esporte, o professor sugeriu que os alunos fossem à aula com uniformes dos clubes pelos quais torcem. A cidade é Natal,  mas as crianças, em expressiva maioria, chegaram com camisas de times de SP e do RJ. Outras, em complemento, com uniformes de agremiações do exterior. Exceções? Sim, meu neto, com o "manto sagrado" do Sport, mais outro garoto, um resiliente torcedor local, com a camisa alvinegra do ABC. Aliás, uma postura que, merecidamente, fez o clube potiguar homenageá-lo. Um herói da resistência. 

Cena dois. A referência vem, de novo, das "terras potiguares". Recebo na minha casa um amigo do meu filho, que veio de Natal, justo para se agregar à torcida do Flamengo. Mais um entre inúmeros, num jogo atípico, quando o Sport, mesmo como mandante do jogo, teve um público pífio na Arena. Isso por conta de uma incomum e desastrosa campanha. Contudo, o que vale realçar agora é um quadro, composto por uma maioria de nordestinos de distintas cidades, cuja participação massiva foi dada também pelo bom momento esportivo do rival.

Bem, há muito o que se comentar desse fenômeno. A propósito, creio que não são apenas os que trabalham com cultura, aqueles que  valorizam e sabem muito bem o significado do que seja identidade. Quero ainda crer numa utopia realista, na qual as riquezas e diversidades, geradas por valores culturais, que a História se encarregou de formar e acumular, possam ter um importante significado. Ou seja, que o passar do tempo tenha se encarregado de mostrar, para parte da sociedade, o real retrato de quanto isso diferencia o Brasil, mesmo que muitos assim não enxerguem. 

Ademais, que essa grandeza expressa por nossos valores identitários, advinda da nossa formação étnica e do nosso arranjo social, possa servir como uma espécie de ativo econômico. Um tesouro de peculiaridade tal, que injustifique aceitar outros padrões civilizatórios, ditados por uma forma incoerente de se aceitar tudo aquilo que trato aqui como um "colonialismo mental" .

De fato, não me cabe aqui entrar no mérito do quanto o "paulista e o carioca way of life" foram massificados pelos meios de comunicação e acessos às informações, num processo avassalador de quebra de sentimentos nativos. Do "imperialismo no futebol" à sutil "padronização de um "modus vivendi" homogeneizado pelas novelas, tudo parece contribuir para uma "unidade nacional", que desrespeita às pluralidades regionais.

Exemplos? Alguns aqui em conta. De primeira, não entendo o porquê de certos paraenses, com tanta "pavulagem" para serem do Remo ou do Payssandu, assumirem como apaixonados por Flamengo ou Corinthians. Por outro lado, penso que as próprias elites do eixo, nada tem a ver, em dados padrões, com seus estratos similares do Nordeste. Ademais, as favelas do Rio e São Paulo não têm ritmos e dinâmicas de vida iguais as das metrópoles do Norte, Nordeste ou Centeo-Oeste. 

Assim, percebo o alcance de uma "pasteurização" imprópria que, infelizmente, parece-me consagrada. Uma postura que não tem validado o respeito que as identidades regionais mereceriam. Meamo assim, ainda resistem, bravamente, as culturas gaúcha (sulista), pernambucana (nordestina) e paraense (nortista), embora sem a dimensão que desse a cada uma delas o valor efetivo e meritório. Ditas essas generalidades, volto ao tema do futebol, para trazer outros aspectos instigantes desse "colonialismo mental". Agora, em duas direções: no conceito amplo e no pragmatismo cotidiano.

Conceitualmente, meu lamento é perceber que muitos que advogam a identidade, quando põem o futebol na pauta, deixam o racionalismo de lado, para fazerem prevalecer o fator emocional que está impregnado no futebol. Acho até que há uma dose imotivada de um certo preconceito supremacista, que age com muita sutileza. Afinal, o que vale nessa hora é a força de uma paixão clubistica que, dissimuladamente, atropela valores, mesmo que isso arrase com aquela identidade que tanto se defende noutra pauta. No mínimo, um paradoxo. 

Por sua vez, o pragmatismo cotidiano é algo capaz de explicar que o distanciamento físico não conseguiu impedir a disposição para negar os valores do seu próprio chão. No futebol, está em cena a formação de uma geração de "torcedores audiovisuais", pois assistir aos jogos das arquibancadas, sempre irá representar uma situação rara. Ou um objeto de desejo, caso a localização geográfica do jogo esperado seja próxima o suficiente, para permitir o acesso físico dos torcedores aos estádios. No mínimo, um registro curioso.

Enfim, o leitor que me segue já percebeu, neste e noutros textos, o quanto relevo o tema da identidade. Para isso, sustento-me na tese do filósofo espanhol José Ortega y Gasset: "eu sou eu e minhas circunstâncias". Portanto, continuo a apostar numa certa razão, dada pela indivisibilidade entre o indivíduo e tudo que lhe cerca. 

Assim, meu maior compromisso está no agir pela realidade que me cerca e influencia. Ou seja, meu esforço de mudança individual passa, simplesmente, pela transformação do meu próprio ambiente. Se já não tolero práticas colonialistas, tê-las ainda como demolidoras de identidades, enquanto referenciais de nação, é favorecer um morticínio semelhante a brincar com material radioativo. Como humanista e pacifista faço alertas, mas passo por longe daquilo que poderá me remete ao caos.