Pix coloca em xeque uso do dinheiro físico
De acordo com dados do Banco Central, o papel-moeda representa só 2% de todas as transações feitas em 2025. Já o Pix, carrega o sistema financeiro com 51,1% das transferências registradas
O dinheiro em espécie, que por anos manteve a liderança nas transações financeiras, enfrenta um de seus momentos mais turbulentos com a chegada de novas tecnologias como o Pix. Isso porque, a expansão dos pagamentos digitais impulsiona a queda no uso das cédulas, transformando a relação dos brasileiros com o próprio dinheiro. Nesse contexto de transformação, a pergunta que fica é: será que as cédulas estão se tornando peças de museu?
Para o economista e consultor financeiro Tiago Monteiro, o Brasil se encontra em um processo claro de transição financeira. “Estamos vivendo a pedra lascada dos criptoativos e criptomoedas, e sabe-se lá o que ainda vamos ver nos próximos 20 ou 30 anos. Hoje, muitas moedas do passado são itens de decoração, como o ‘réis’, ‘cruzeiro’, ‘cruzado’. Com o Real, isso pode acontecer”, afirmou.
De acordo com os dados do Banco Central, o papel-moeda representa apenas 2% de todas as transações feitas em 2025. Já o Pix, carrega o sistema financeiro inteiro com 51,1% de todas as transferências registradas. O movimento ainda é acompanhado por uma taxa anual de queda média de 9,8% no uso das cédulas, enquanto o Pix apresenta uma taxa de crescimento médio de 184,5% todos os anos, reforçando o novo comportamento do consumidor.
“A velocidade do PIX trouxe mais dinamismo para quem vende e para quem consome com um custo relativamente baixo. Esse mecanismo quebrou a logística do dinheiro físico. Com a facilidade e até com a segurança do PIX, ele foi amplamente difundido e abraçado por todas as camadas. Ou seja, enquanto um era mais burocrático, perigoso e exposto, o outro mostrou-se bem mais interessante”, disse Tiago Monteiro.
Caso o ritmo de encolhimento se mantenha, a estimativa é que as operações com dinheiro vivo tornem-se cada vez mais estatisticamente irrelevantes, com menos de 1% das movimentações financeiras, por volta de 2030. Entretanto, os economistas ressaltam que a transição para um sistema 100% digital é mais complexa e lenta do que os números aparentam.
“A economia teria que ser totalmente digital, o que exigiria avanços intensos em infraestrutura, inclusão digital, e segurança contra fraudes. A exclusão financeira poderia aumentar, principalmente para grupos vulneráveis como idosos, populações de baixa renda, e pessoas sem conta bancária, se não fossem tomadas medidas eficazes para inclusão e proteção dos usuários”, afirma o economista Edgard Leonardo Lima.
Já Tiago Monteiro complementa essa visão, afirmando que, historicamente,todas as mudanças nos meios de pagamento vieram acompanhadas pela exclusão.
“Quando saímos do escambo para os metais, isso ocorreu. Quando saímos dos metais para o papel moeda, isso também ocorreu. Pessoas serão excluídas, pessoas não vão querer mudar, pessoas vão querer impor. Tudo isso leva tempo e precisa ser feito com muito cuidado, estratégia e parcimônia.”
Resistência
Apesar das mudanças tecnológicas, o dinheiro físico continua presente na rotina de muitos brasileiros. Este é o caso do aposentado Jorge Moreira, de 76 anos, que ainda sente dificuldade em abandonar completamente as notas.
“Me sinto muito mais seguro quando disponho do dinheiro físico. Embora mescle o modo de pagar, ficar sem o dinheiro físico ou não usá-lo mais tira de mim uma espécie de independência”, afirma.
O aposentado Jorge Moreira ainda prefere utilizar as cédulas em vez do Pix. Foto: Arthur Botelho/Folha de Pernambuco.
Para Jorge, a chegada dos pagamentos digitais entra em conflito com décadas de hábitos já consolidados. O costume de negociar, guardar e organizar as finanças com as notas em mãos, torna a transição ainda mais desafiadora.
O sentimento também é compartilhado pela esposa Valdete, de 81 anos, que mesmo enfrentando problemas para conseguir troco em algumas compras, segue resistindo a digitalização.
“Ainda uso bastante o dinheiro físico. Nada contra quem aderiu ao Pix como sua moeda preferida porque facilitou a vida de muita gente. Já cheguei em lojas, onde praticamente só aceitava o Pix ou cartão de crédito, porque o fornecedor não trabalhava com dinheiro. Mesmo assim, não me sinto segura usando só a moeda digital. Se o dinheiro físico deixar de existir, para mim faz falta sim”, concluiu.
Valdete, esposa de Jorge, não sente segurança em usar apenas a moeda digital. Foto: Felipe Ribeiro/FolhaPE.
A situação vivida por Jorge e Valdete exemplifica bem as diferenças geracionais na relação com o dinheiro. Isso porque, enquanto os mais jovens lidam com as finanças de forma simples, imediata e despreocupada, os mais velhos ainda carregam as memórias de um passado marcado por instabilidade.
“O dinheiro ainda é muito cultural, principalmente quando falamos de choque de gerações. Os mais experientes não tiveram boas lembranças em alguns momentos históricos, devido à inflação galopante, confisco de poupança, congelamento de preços. Mas, com o advento do PIX, a chegada de bancos digitais e as novas gerações, o digital está ganhando mais espaço, seja no modo como a gente estuda, como a gente compra e, claro, como a gente paga”, explica Tiago Monteiro.
O economista Edgard Leonardo Lima complementa essa linha de pensamento, afirmando que o vínculo com o dinheiro em espécie permanece mais forte e emocional.
“Essas pessoas (os mais velhos) precisarão se adaptar a formas digitais de guardar e movimentar dinheiro, o que exige suporte educacional e tecnológico para evitar insegurança e desconfiança no sistema financeiro”, explicou. “Creio que ainda vamos conviver com as duas formas, a física e a digital, pois hoje muitos sequer andam com suas tradicionais “carteiras” apenas o celular e suas carteiras digitais. Todavia, ao mesmo tempo, alguns ainda transacionam valores relevantes em dinheiro”, concluiu.
Desafios para a inclusão
Com o cenário de cada vez maior utilização de serviços digitais no universo financeiro, o Brasil ainda vive o desafio de promover uma inclusão digital a toda a população.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do IBGE, a estimativa de 2024 é que 20,9 milhões de pessoas (11,1%) da população acima de 10 anos de idade não tinham telefone móvel celular para uso pessoal no país.
Vale destacar que esse número está em queda. A mesma pesquisa, em 2019, representava 18,6% da população brasileira acima de 10 anos.
De acordo com a pesquisa do ano passado, a maior motivação para a falta do celular foi justamente por não saber utilizar o equipamento. Cerca de 30% das pessoas relataram essa questão.
Por meio da Secretaria de Transformação Digital, Ciência e Tecnologia (SECTI) e da Rede Compaz, a Prefeitura do Recife desenvolveu o programa Viva Mais Cidadania Digital.
O secretário da pasta, Rafael Cunha, considera que o projeto aborda o uso do smartphone, aplicativos de comunicação, redes sociais, prevenção de golpes e acesso a serviços públicos como o Conecta Recife e o Gov.br para os recifenses com 60 anos ou mais.
“É uma dinâmica social que a gente não tem como remar contra. As pessoas vão cada vez mais utilizar serviços que têm sido disponibilizados em meio digital. Eu acho que o que a gente precisa fazer, é, de fato, entender que isso é uma realidade e trazer essa forma de inclusão digital”, destacou.
Após formar mais de 350 idosos em 2025, o programa segue no próximo ano e deve instruir mais de 1.000 pessoas com 60 anos ou mais. No total, serão 40 turmas e as vagas são disponibilizadas através do Conecta Recife.
Cuidado com golpes
Em razão da maior quantidade de pessoas utilizando os serviços digitais, as possibilidades de golpes e fraudes também aumentam. Uma série de crimes foi desenvolvida com a digitalização dos pagamentos e de transações financeiras.
Segundo o professor e especialista em segurança cibernética, Eronides Meneses, as pessoas precisam ficar atentas à situações como clonagem e roubo de contas de WhatsApp, usadas para solicitar transferências de parentes e amigos; golpes de falso suporte bancário pelo PIX; falsos anúncios em compras virtuais, entre outras possibilidades.
“Em ambiente digital, o comportamento preventivo vale mais que qualquer tecnologia”, destacou o especialista. As principais recomendações de segurança são verificar sempre a titularidade antes de confirmar um PIX, utilizar cartões virtuais temporários para compras online, reduzindo o risco de clonagem, e habilitar autenticação em duas etapas em todas as contas bancárias e no WhatsApp.