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Urias retorna ao Recife com o show "Carranca" no festival Coquetel Molotov, neste sábado (6)

Em novo álbum, a artista mineira mergulha em temáticas que giram em torno de liberdade, resistência, identidade negra e ancestralidade

Urias - Mateus Aguiar/Divulgação

No Brasil profundo — de Minas Gerais ao Vale do São Francisco —, a figura da carranca vigia portas, embarcações e destinos. Uma figura híbrida, meio humana, meio encantada, guardiã contra tempestades e maus espíritos. 

É dessa imagem que Urias parte para estruturar a narrativa do seu mais recente e ambicioso álbum, “Carranca”, que ela apresentará ao público recifense neste sábado (6), em show no festival No Ar Coquetel Molotov, que acontece no Campus da UFPE, Cidade Universitária.

Recife receberá o terceiro show desta nova turnê de Urias. “Carranca” estreou em 15 de outubro, no Batekoo Festival, em São Paulo (SP). Em seguida, Urias aportou em São Cristovão (SE), para o Festival de Artes de São Cristovão (FASC), no último dia 21 de novembro.

“Carranca”
Terceiro álbum de estúdio de Urias – sucedendo “Fúria” (2022) e “Her Mind” –, “Carranca” é apinhado de significados que partem da mítica personagem que é a carranca, figura esculpida em madeira, que pode estar em proas de embarcações ou nas portas das casas de tantos brasileiros, como elemento místico e de proteção.

Em “Carranca”, Urias traz como base narrativa temas ligados a identidade negra, liberdade, resistência, a elementos das religiosidades de matriz africana, conectando passado, presente e futuro. Essa percepção do tempo – não-linear – é herança direta de cosmologias africanas, onde o tempo se dobra e convive em simultaneidade. 

O mar também é personagem fundamental em “Carranca”. No álbum, o mar não é só imagem: é narrativa. Narrativa que resgata o caminho da vinda forçada, a diáspora, mas, também, o anúncio de um retorno possível, espiritual, imaginado.

“O mar foi o caminho da vinda, mas também trago essa esperança de ser o caminho de volta”, conta Urias em entrevista à Folha de Pernambuco. “Então, a carranca entra nessa coisa das navegações, de tirar as coisas ruins da frente para poder passar, e voltar, fazer o caminho de volta, entender a minha história, entender a minha ancestralidade, para trazer de volta para essa realidade brasileira atual, o que eu quero dizer num sentido de conexão com o  passado… é enxergar o futuro através do passado”, discorre.

Lembrando também que na cultura afro-brasileira, a carranca está ligada a Exu, orixá considerado o mensageiro entre o mundo material e espiritual.

Álbum
“Carranca” tem a produção de Rodrigo Gorky e Maffalda, apresenta 14 faixas, incluindo os três interlúdios narrados por Marcinha do Corintho — importante figura da cultura transformista e LGBTQIA+, atualmente com 58 anos, e referência da cena drag de São Paulo.

Para Urias, Marcinha é entidade viva da ancestralidade trans que simboliza longevidade. Os interlúdios funcionam como bússolas espirituais, abordando liberdade, revolta e retorno à Etiópia, entendida como origem da humanidade e metáfora da liberdade plena.

No álbum, Urias traz feats com Criolo, Giovani Cidreira, Don L e Major RD. Em “Deus”, primeiro single de “Carranca”, Urias divide os vocais com Criolo para cantar sobre o apagamento religioso dos povos africanos quando vindos ao Brasil. 

A faixa traz sample de “Soca Pilão”, um cântico de escravos gravado por Inezita Barroso, em 1954, com arranjos de José Prates. “[‘Deus’ é] uma música que denuncia esse roubo cultural e religioso, esse vazio que ficou na nossa história enquanto afrodescendentes”.

O baiano Giovani Cidreira tem participação intensa em “Carranca”. Além de co-autor de seis músicas do álbum, ele participa cantando na faixa “Herança”, que confronta o legado de um País erguido sobre sangue negro, e que esquece quem o construiu de fato.

O rapper cearense Don L participa de “Paciência”, faixa que é um verdadeiro desabafo e crítica à indústria musical brasileira, ao jogo desigual que se trava dentro dessa estrutura, que privilegia uns em detrimento de outros.

“A Voz do Brasil”, faixa que encerra o álbum, traz um feat com Major RD. Com um sample de “O Guarani”, ópera de Carlos Gomes, a faixa é uma crítica à imagem do Brasil vendida lá fora e também à própria auto-imagem ilusória dos nativos. O coro que repete “Eu também quero ir pro Brasil” se questiona qual é esse Brasil. É sobre identidade, ilusão e pertencimento.

Em “Quando a Fonte Secar”, Urias alerta sobre a potência criativa das pessoas negras e sobre o impacto de sua ausência. Já em “Vontade de Voar”, retoma Ednardo para falar da ascensão interrompida por estruturas que se movem para conter corpos racializados. 

Outro ponto alto de “Carranca” é “Águas de um Mar Azul”, canção perdida de Hyldon, composta há meio século. A música, descoberta por Gorky, tão improvável que nem o próprio compositor lembrava da faixa. A aprovação de Hyldon — recebida depois de ouvir a música pronta — funcionou como sinal, ou bênção, para Urias seguir na trilha do disco.

Afro-surrealismo
Visualmente, Carranca expande o conceito para uma mitologia própria. A capa do álbum é obra do artista Isaac de Souza Sales. 

A diretora criativa Ode e Urias constroem uma iconografia afrossurrealista que mescla corpos humanos e animais, referencia orixás, retoma Egito, deuses híbridos, tensões raciais, e culmina num carnaval espiritual – de cura e elevação, não de fuga.

“Visualmente, a gente conseguiu meio que revisitar vários exemplos de ancestralidade negra, então, a gente passa pelo Egito, onde os deuses também fazem parte desse afro-surrealismo,  num sentido de ter essa mistura dos animais com o ser humano, nos deuses”, explica Urias.

Capa do álbum "Carranca" | Imagem: Isaac de Souza Sales/Reprodução

“Até a escolha de cores, o que cada cor principal representa, as antagonias – preto e o branco, as tensões raciais, o azul royal, a Europa, a colônia, já o vermelho, Exú, África”.

No show, essa estética se desdobra em cores, telões, interludes, elementos de palco e coreografias assinadas por um time de profissionais que Urias escolheu para ampliar o vocabulário corporal dessa nova fase.

Show no Recife
Recife assistiu a shows apoteóticos de Urias nos últimos anos. Em 2023, por exemplo, ela esteve por aqui quatro vezes: dois shows no Carnaval; voltou à Capital pernambucana para shows em agosto e, posteriormente, em novembro daquele ano.

“Sempre fui muito bem recebida em Recife. Recife é a cidade que a gente sabe que vai ser bom o show. É sempre assim. A gente sabe que vai ser muito bom, e eu espero que todo mundo abrace, todo mundo goste dessa nova experiência, que é ‘Carranca’”, fala.

“Eu acho que das outras vezes que eu fui em Recife, eu nunca fui com essa estrutura assim, sabe?”, compartilha Urias: “Por conta do álbum, de existir outras coisas, a gente tá trazendo outra estrutura. Acho que é o show meu em que eu tive mais estrutura no sentido de que agora tem banda, então, é toda outra dinâmica o show (...) sem deixar de ter o teor pop que tinha antes, sempre acrescentando mais camadas e mais mistérios. E eu acho que vai ser muito incrível. Tô ansiosa para chegar logo.”