Nara Leão, a flor no morro (1)
O Rio de Janeiro é soma de cores. Adição de amores. Tem Zona Sul e Zona Norte. Tem centro e subúrbio. Tem morro e cidade. Tem afluência e pobreza. Tem Copacabana onde a bossa nova surgiu. E onde Nara Leão nasceu e viveu.
Os territórios do Rio foram ligados fisicamente. Pelo túnel Santa Bárbara, conectando Laranjeira ao centro, inaugurado em 1963. E pelo túnel Rebouças, conectando a Lagoa ao Rio Comprido, inaugurado em 1967.
Espaços ligados também de outro modo. Na cumplicidade musical. O Rio do centro, do morro, onde o samba cresceu, colou-se ao Rio da Zona Sul, praieiro, da bossa nova. Tratou-se de vínculo existencial, telepático. Entre burguesia e operariado. Dois mundos diversos entre si. Mas unidos pelo espírito do tempo. E pelo violão. A espuma do mar de Copacabana beijando a fímbria de morros sonoros.
Um tempo, no mesmo instante, obscuro e claro. Escuro na política. E luminoso na cultura. Reinaugurando-se, a cada aurora, na criação de música, de teatro e de cinema. Celebrando, a cada arrebol, conjunção social e étnica. Tropical. Cerebral. E plástica. É aí que foi gravado o primeiro disco de Nara cantando música de Zé Keti. Em 1963. Uma comunhão cultural.
Nara morava na casa dos pais, na avenida Atlântica. Que virou a meca da bossa nova. Para onde acorria, todas as noites, a nascente geração de compositores e músicos brasileiros: Carlinhos Lyra, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Edu Lobo, Vinicius de Moraes, Francis Hime. E Tom Jobim.
Na época, Nara disse: “Eu descobri um outro lado da vida e do mundo, que não era só o sorriso, a flor e o amor. E eu fiquei muito impressionada com coisas que eu não sabia e descobria naquele momento: descobri que havia fome, descobri que havia morro, descobri que havia pessoas pobres. Eu nunca tinha me dado conta”. Foi então que Aloysio de Oliveira a convidou para cravar um disco na sua gravadora, Elenco.
Nara prossegue: “A Elenco teve importância grande. Porque juntou todo mundo. E conseguiu ter uma visão sobre a música popular brasileira. Nessa altura, eu tinha descoberto a música de protesto e o samba de morro. Então, meu primeiro disco já foi com samba de morro, com Diz Que Fui Por Aí”.
Os amigos mais próximos de Nara perceberam sua mudança de cabeça e de repertório. Nara passara a convidar seus companheiros de bossa nova para conhecer seus novos parceiros de morro: Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Keti.
Isto é um exemplo de Brasil. Brasil branco, preto, mulato. Brasil misturado, miscigenado. No qual, o espírito da música, confluente, fez o morro descer. E fez a bossa subir. Encontro com data agendada. Todo Carnaval. Mas, neste caso, não havia agenda marcada. Não era nem Carnaval. O que houve foi o espírito brasileiro da tri-raça. Confraternização. De harmonia musical. De sintonia inter-racial. E o carisma doce, inventor, sagrado, de Nara Leão.