Cinema

Como um bicheiro com um filme roubado se tornou um pioneiro do cinema no Brasil em 1897

Homem de muitas profissões, José Roberto do Cunha Salles tentou patentear a invenção do cinema no Brasil; obra de meio segundo está na programação do Festival Dobra

Cena do filme sem título que Salles utilizou - Reprodução

Um filme roubado, o Jogo do Bicho e um bem-sucedido trambiqueiro pernambucano estão na origem do cinema brasileiro. E não há exagero algum nessa história: como a garotada gosta de dizer na internet, o “roteirista” realmente foi longe demais ao escrever a vida real de José Roberto do Cunha Salles, o homem que alegou ter inventado o cinema no Brasil em 1897 ao supostamente filmar durante meio segundo o mar batendo num ancoradouro para barcos de pesca.

Com convicção e cara de pau, em 27 de novembro daquele ano ele deu entrada no antigo Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas com a documentação para patentear um sistema que gravava, revelava e exibia filmes. A prova era o filmete do ancoradouro, que ele diz ter sido produzido no Rio. No pedido, Cunha Salles requereu “ser o único da República e fora dela a tirar fotografias de celulóide” e “exibi-las por meio de máquina de projeção em toda e qualquer parte da capital federal e dos estados deste importante país”.

Se fosse verdade, Cunha Salles teria feito cinema no Brasil um ano antes de Afonso Segreto ter filmado “Vista da Baía de Guanabara” (em 19 de junho de 1898), aquele que é considerado o primeiro filme brasileiro da História; e dois anos depois de os irmãos Lumière terem mostrado seu cinematógrafo em Paris (28 de dezembro de 1895), o marco zero do cinema mundial.

Mas falar a verdade não era parte da rotina de Cunha Salles.
Esse filme de meio segundo, que nunca nem recebeu um título formal, será exibido neste sábado (dia 7 de dezembro), às 17h30, no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio, pela décima edição do Dobra — Festival Internacional de Cinema Experimental. A mostra vai até domingo, e inclui outras 73 produções nacionais de todas as épocas, de nomes como Lygia Pape, Carlos Nader, Zózimo Bulbul e Glauber Rocha.

— Como estamos celebrando essa trajetória de 10 anos, nesta edição resolvemos fazer uma homenagem ao cinema experimental brasileiro — conta Cristiana Miranda, cocuradora do Dobra, que apresentará a performance “Os passeios semeiam o caminho” no sábado, após o programa com o filme do ancoradouro. — E é ótimo termos a obra do Cunha Salles neste ano, para discutirmos quando começa o cinema no Brasil.

— O filme nem era dele. Provavelmente ele usou fotogramas de alguma produção estrangeira, talvez da Inglaterra, talvez dos Estados Unidos — diz Lucas Murari, o outro curador do Dobra. — Neste ano, o festival convidou pessoas do Brasil e de fora para pensar a genealogia do cinema brasileiro com programas temáticos. A obra do Cunha Salles foi incluída no programa sobre found footage (filmes feitos a partir de imagens encontradas), do Carlos Adriano (cineasta e pesquisador, autor do curta “Remanescências”, de 1997, realizado a partir do filme sobre o ancoradouro).

No caso de Cunha Salles, mais do que simplesmente a apropriação de um material encontrado, a pequena filmagem do ancoradouro esconde uma enorme trama cinematográfica, a começar pela trajetória de seu protagonista. Numa pesquisa on-line na hemeroteca da Biblioteca Nacional pelos jornais do fim do século XIX, Cunha Salles aparece citado regularmente por profissões tão diferentes como médico, advogado e inventor. E não eram homônimos, era ele mesmo, um pernambucano nascido em 1840, que se formou advogado na Faculdade de Direito do Recife, foi uma figura influente em Alagoas e se mudou para o Rio de Janeiro na década de 1880, elevando em muito sua fama.

“O Mequetrefe”, célebre periódico satírico do Rio no período, volta e meia dedicava linhas aos seus feitos, aparentemente com ironia. Na edição de 10 de junho de 1884, publicou sobre Cunha Salles que “toda a imprensa do país tem merecidamente dispensado as mais inequívocas provas de veneração e apreço a esse distinto brasileiro, que, por amor à ciência e à sua pátria, tem sabido conquistar o respeito para seus invejáveis dotes intelectuais". A “Gazeta de Notícias”, mais um antigo jornal carioca, foi ainda mais direta na zombaria em sua edição de 11 de maio de 1890: “Ficamos nós devendo à estupenda sabedoria do Sr. Dr. José Roberto da Cunha Salles, jurisconsulto, médico, músico, farmacêutico, químico, alquimista, droguista, romancista, artista, dentista, etc. etc. e muitos outros etc.”.

Ou seja, quando tentou patentear o cinema, em 1897, Cunha Salles já era um vigarista conhecido na capital. Durante anos, ele manteve um escritório no Centro, e frequentemente anunciava seus serviços de advogado nos jornais. Lançou uma sequência de livros de Direito que dizia ser de sua autoria, uma coleção intitulada “Tesouro Jurídico”. Também foi candidato a deputado, mas perdeu.

— Eu já achei alguns desses livros dele. Mas eles eram compostos só de citações de outros livros. Ele juntava e publicava como se fosse dele, para pegar os incautos — explica Hernani Heffner, gerente da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio. — Era muito picareta, mas um picareta genial.

Em algum momento na década de 1880, Cunha Salles passou a dizer que também era médico e lançou uma série de remédios que ele dizia ter desenvolvido. O mais conhecido foi o xarope Xumby Caena, que prometia combater asma, bronquite, coqueluche, tosse, escarro de sangue e até constipação. Ainda na área médica e no mesmo 1897 em que alegou ter inventado o cinema, Cunha Salles pediu ao Ministério da Agricultura o privilégio — na época, um sinônimo usado para “patente” — para outros dois remédios de sua veia criativa: o “Robertina Anti-cholerica” e o “Toni-nutritivo Reconstituinte” . Dois anos depois, ele tentou o mesmo com o elixir “Mata Febre". Nos três casos, não obteve êxito.

No entanto, como bom brasileiro, Cunha Salles não desistia nunca e conseguiu diversos privilégios entre as dezenas que tentou, como o de um produto para evitar a oxidação do ferro e o de um remédio para o estômago. Era uma época de rápidos avanços tecnológicos (a lâmpada de Thomas Edison, por exemplo, é de 1879), e tinha muita gente como Cunha Salles “inventando” qualquer coisa para patentear e enriquecer.

Uma de suas patentes aceitas e mais bem sucedidas foi a de um sistema de reprodução de bonecos de cera, em 1895, quando inaugurou o Pantheon Ceroplástico dos Vultos Célebres do Brasil. Era, em teoria, um inofensivo museu de cera como o londrino Madame Tussauds, mas que na prática lhe rendeu acusações de usar o espaço para explorar o jogo do bicho. Em sua defesa, Cunha Salles assinou um texto em alguns jornais cheio de exclamações: “Pobre Brasil!! Eu pensava que só a canalha é que mentia! Enganei-me!! Mais do que ela, mentem as gralhas disfarçadas com penas de pavão!! Mais do que ela, mentem todos aqueles que me julgam capaz de descer até manter uma casa de jogo” .

Em 1897, a persona “empresário do entretenimento” de Cunha Salles teve, enfim, um invento histórico e real. Ele inaugurou, em parceria com Pascoal Segreto (irmão de Afonso Segreto), a primeira sala de cinema do Brasil, batizada de Grande Salão de Novidades Paris no Rio. Ficava na Rua do Ouvidor, no Centro do Rio, e exibia imagens em movimento com equipamentos e filmes trazidos da Europa, inclusive um cinematógrafo dos irmãos Lumière. Foi do Salão de Novidades que veio o incentivo para buscar a patente do cinema no Brasil.

— Era incrível sua capacidade de inventar coisas e, principalmente, sua cara de pau — afirma Hernani Heffner. — No pedido de patente do cinema, ele demonstrou conhecimento técnico, fica claro que ele se aprofundou. Mas ele não tinha um interesse específico no cinema, queria mesmo era usar tudo aquilo como cortina de fumaça para o jogo do bicho.

Cunha Salles chegou a ser preso por um breve período por sua ligação com os jogos de azar, no fim da década de 1890. Ele morreu em 1903, como foi noticiado na primeira página do “Jornal do Brasil” de 5 de outubro: “Faleceu ontem, às 8 horas da noite, o dr. José Roberto da Cunha Salles, médico e advogado muito conhecido não só nesta capital, como nos estados e no exterior. Espírito empreendedor, homem de merecimento, o dr. Cunha Salles, que no passado foi deputado provincial em Alagoas, escreveu várias obras sobre jurisprudência e medicina, foi inventor de diversos medicamentos, e autor de peças teatrais, empregando ainda em outros misteres a sua atividade”.

Se aquela patente de 1897 tivesse sido aceita, provavelmente homenagens como essa exagerada do “Jornal do Brasil” se repetiriam nas décadas seguintes, acrescidas de um título: o inventor do cinema brasileiro.