ASFALTO NA FLORESTA

Congresso inclui brecha para asfaltar via na Amazônia que gerou bate-boca de senadores com Marina

Versão do texto aprovada pelo Senado na quarta-feira torna automaticamente prioritárias 'obras de reconstrução e repavimentação de rodovias cujos trechos representem conexões estratégicas'

Os próprios passageiros puxam o ônibus atolado na BR-319 - TV Globo/Reprodução

A Licença Ambiental Especial (LAE), aprovada pelo Senado na quarta-feira (3), contém uma brecha para a liberação da pavimentação da rodovia BR-319 em até 90 dias. A obra, que corta o coração da Amazônia, é apoiada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e está no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), ao mesmo tempo em que é criticada por ambientalistas, que temem o crescimento do desmatamento em uma das áreas mais preservadas da floresta.

Especialistas ouvidos pelo Globo destacam que o novo modelo de licenciamento, que prevê uma tramitação acelerada para projetos considerados “estratégicos” pelo governo, trará o afrouxamento de regras para empreendimentos na região que vão da exploração de petróleo na bacia amazônica até a agropecuária extensiva e a mineração. Com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), como seu principal fiador, a LAE foi estabelecida em uma Medida Provisória (MP) enviada pelo Executivo ao Congresso.

A versão original do texto, porém, não continha um novo dispositivo, incluído pelos parlamentares, que torna automaticamente prioritárias “obras de reconstrução e repavimentação de rodovias cujos trechos representem conexões estratégicas”. Defensores da retomada dos trabalhos na BR-319 destacam que ela é a única via terrestre que liga Manaus ao restante do país, e portanto, reduziria o isolamento da capital do Amazonas.

O texto também estabelece um prazo máximo de três meses para que seja concedida uma Licença de Instalação, necessária para que a pavimentação seja colocada em prática. Uma Licença Prévia para a obra na BR-319, expedida durante o último ano do governo Bolsonaro, foi suspensa novamente pela Justiça Federal em julho, após uma ação civil pública movida pela rede Observatório do Clima apontar ilegalidade no processo.

"O dispositivo incluído na LAE tende a acelerar a reconstrução, a pavimentação e as melhorias da BR-319, sem salvaguardas adicionais proporcionais ao risco. Favorecendo a reabertura da frente de desmatamento ao longo da estrada e de seus ramais e permitindo que empreendimentos estratégicos avancem sem avaliar adequadamente impactos cumulativos e indiretos sobre territórios indígenas e modos de vida", afirma Adriana Pinheiro, assessora de Incidência Política e Orçamento no Observatório do Clima.

A LAE impõe um prazo máximo de um ano para que os empreendimentos tidos como estratégicos sejam analisados. O dispositivo estabelece que empreendimentos considerados estratégicos pelo Conselho de Governo, que reúne o presidente da República e ministros, poderão ser acelerados.

O texto, porém, preservou as três fases tradicionais do licenciamento e a exigência de Estudo de Impacto Ambiental (EIA). A proposta inicial de Alcolumbre — entusiasta da exploração de petróleo na Bacia da Foz do Amazonas — previa uma licença monofásica, o que foi vetado por Lula na da Medida Provisória (MP) enviada pelo Executivo em agosto.

O documento final aprovado no Senado mantém a estrutura da MP de Lula, mas reabre pontos da Lei Geral do Licenciamento e restaura trechos vetados pelo Executivo. Essa votação no Congresso seguiu o movimento do Legislativo pela flexibilização do processo, após, na semana passada, os parlamentares derrubarem 56 dos 63 vetos presidenciais. O texto segue agora para sanção presidencial.

Diretora-executiva do Instituto Internacional Arayara, Nicole Figueiredo opina que a aprovação da LAE “representa um grave retrocesso no licenciamento ambiental, permitindo que projetos de exploração de petróleo e mineração sejam aprovados com prazos acelerados e sob critérios políticos, e não técnicos”.

"Com um prazo de apenas 12 meses para análise, essa medida não só prejudica a profundidade das avaliações necessárias, mas também anula a participação efetiva das comunidades e ignora as especificidades locais. O que está em jogo é um licenciamento que desconsidera a saúde do meio ambiente e dos povos que lá habitam, em favor de uma agenda de expansão fóssil que pode causar danos irreversíveis à Amazônia", aponta Figueiredo.

Pavimentação da BR-319
Com pouco mais de 850 quilômetros de extensão, a via construída na ditadura militar conecta Manaus, no coração da Floresta Amazônica, a Porto Velho, no arco do desmatamento. A estrada compreende 13 municípios, 42 Unidades de Conservação e 69 Terras Indígenas. Em setembro, Lula afirmou que a obra seria autorizada em acordo com ambientalistas. Quatro meses antes, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, foi alvo de ataques em uma sessão no Senado sob acusação de frear o desenvolvimento do Brasil no que tange o licenciamento ambiental.

Divulgado no mês passado, um relatório da rede de organizações Observatório BR-319 mostra que ao menos 2.240 quilômetros de estradas ilegais que cruzam a rodovia avançaram sobre unidades de conservações federais. Outros 1.297 quilômetros de vias também clandestinas atravessam territórios indígenas. Os dados, consolidados em agosto deste ano, apontam que esses novos caminhos estão associados ao desmatamento, grilagem de terras e a processos de mineração. As vias funcionam como corredores para o interior da floresta, o que colocaria em risco áreas anteriormente isoladas.

Em nota divulgada após a aprovação da licença especial no Senado, o Observatório do Clima afirma que a BR-319 “implodirá o controle do desmatamento – e, por tabela, das emissões de gases de efeito estufa do Brasil”.

“A LAE integra o conjunto de medidas que transformam o licenciamento de empreendimentos em exceção no Brasil, contrariam jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e põem em risco a vida e a saúde dos brasileiros”, diz a rede.

Em nota, o Ministério do Meio Ambiente criticou a inclusão do dispositivo sobre a repavimentação de rodovias preexistentes na MP. O texto argumenta que isso traz “ritos sumários incompatíveis à adequada avaliação prévia, exigida pela legislação ambiental”, o que “enfraquece o licenciamento ambiental e gera mais insegurança jurídica".