A canetada que reescreve a constituição e blinda o STF
Algumas decisões judiciais interpretam a Constituição. Outras a expandem. Mas há aquelas que simplesmente a reescrevem. É o caso da medida cautelar concedida pelo ministro Gilmar Mendes na ADPF 1.259, que alterou, por decisão individual, o regime jurídico do impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal. Não se trata de pequena correção técnica, mas de uma intervenção profunda no equilíbrio entre os Poderes e no próprio desenho da democracia constitucional.
A Constituição de 1988 estabelece com clareza a competência do Senado para julgar ministros por crimes de responsabilidade e fixa o quórum de dois terços para a condenação. Nada diz, porém, sobre o quórum de admissibilidade da acusação, sobre eventual exclusividade do Procurador-Geral da República para oferecê-la ou sobre a impossibilidade de afastamento cautelar. Esses critérios foram definidos pelo legislador na Lei 1.079/1950, que atravessou sucessivas Constituições sem contestação quanto à sua recepção.
Ao determinar, por cautelar monocrática, que apenas o PGR pode denunciar ministros, que o Senado deve acolher a acusação por dois terços e que não há afastamento automático do magistrado, a decisão ultrapassa a fronteira da interpretação. O que se tem é a criação de um novo regime constitucional do impeachment, sem participação do Parlamento e sem respaldo no texto vigente. É mais do que ativismo: trata-se de um exercício de poder constituinte por via judicial.
Há outro problema evidente: a medida cautelar não atende aos requisitos mínimos de urgência. Não há risco iminente de lesão institucional nem processo em curso que justificasse intervenção excepcional. Tampouco há plausibilidade jurídica prévia, pois a Constituição jamais incorporou as exigências agora impostas. Criar os fundamentos de uma cautelar a partir da própria tese do julgador equivale a inverter o conceito de fumaça do bom direito.
A retirada do direito do cidadão de apresentar denúncia, substituindo uma prerrogativa republicana por concentração acusatória nas mãos de uma única autoridade, é igualmente grave. Desde 1950, qualquer brasileiro pode provocar o Senado em casos de crime de responsabilidade - expressão direta do princípio de que todo poder emana do povo. Ao extinguir esse direito por decisão individual, compromete-se o papel do cidadão como titular da soberania.
Ao impor novas regras ao processo de impeachment, a decisão também interfere na competência privativa do Senado e desequilibra o sistema de freios e contrapesos. O Legislativo, eleito pelo voto popular, não pode ser reduzido à condição de executor de um procedimento redesenhado por quem usurpa atribuições constitucionais.
O precedente é preocupante. A proteção das instituições não se faz pela concentração de poder em qualquer uma delas, mas pela observância rigorosa dos limites que a Constituição impõe a todas. Mesmo que o Plenário venha a confirmar a liminar, o vício permanece: o STF não pode se tornar autor da Constituição que deveria interpretar.
O tema do impeachment de ministros do STF é legítimo e merece debate, mas esse debate pertence ao Parlamento. Democracias se preservam quando os Poderes respeitam suas fronteiras. Quando essas fronteiras são ultrapassadas - sobretudo por decisões individuais -, o risco não é apenas jurídico: é estrutural.
Que o Congresso Nacional tenha a altivez necessária para exercer os freios e contrapesos que a Constituição lhe confiou. Em 5 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães proclamou a “Constituição Cidadã” como o marco de um país que não admitiria a supremacia de nenhum poder sobre os demais. Hoje, honrar esse legado significa impedir que intérpretes da Carta a transformem em obra própria. O momento exige coragem institucional: restaurar o equilíbrio entre os Poderes é proteger a cidadania que a Constituição prometeu - e que Ulysses convocou o Parlamento a defender para sempre.
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