OPINIÃO

Verão

Moro numa cidade que gosta de se gabar de uma coisa curiosa: dizem que é uma das pontas mais a leste das Américas. Uns juram que é João Pessoa, outros garantem que é Recife. No fundo, pouco importa quem ganha essa disputa; o que me interessa é essa sensação de saber que, por aqui, o sol resolve dar as caras um pouco mais cedo. Como se viesse nos acordar primeiro, cochichando: - Levanta, que o verão já começou. Verão, para mim, não é só uma estação do ano. É um estado de espírito. É o tempo em que as pessoas saem mais de casa, ocupam a rua, a calçada, a orla, a mesa do bar. O ar fica mais leve, mais animado. Até quem é mais calado parece que desamarra um sorriso a mais no rosto. A cidade, que no resto do ano anda meio apressada, no verão ganha outro passo - continua correndo, claro, mas agora corre à luz, correndo ao encontro de um banho de mar, de um sorvete derretendo na mão, de um pôr do sol em Boa Viagem, de um encontro marcado ou completamente imprevisto. 

Aqui na nossa cidade, durante muitos anos, tivemos o “abraçar o sol”, que depois virou o “Vem abraçar o verão”, na praia de Boa Viagem. Normalmente caía em setembro. Oficialmente ainda não era verão no calendário, mas, para nós, era o anúncio de que o tempo de verão estava começando. Era o prólogo da estação: a luz mudava, o calor dava seus primeiros sinais e a gente, sem perceber, passava a viver como se o verão já tivesse sido decretado. Com o tempo, esse “abraçar o sol” foi perdendo o sentido. Virou uma festa grandiosa, barulhenta, cheia de estrutura, palcos, som, patrocínio. Parecia profissional, mas, no fundo, era um amadorismo sem regra, um exagero que engolia a delicadeza da ideia original. Aquilo precisava mesmo era acabar daquele jeito. A gente tinha - e ainda tem - que reaprender a enxergar o verão de forma silenciosa e tranquila: cada um com o seu sol, o seu mar, o seu pedaço de sombra na areia. Para completar, muitas vezes essa data coincidia com o 7 de setembro, feriado. Antes era só um dia bom para ir à praia, começar o “tempo de verão”, esticar a manhã e a conversa. Aos poucos, o feriado foi ganhando outro peso, virou palco de discursos, de disputa, de divisão. Infelizmente, passou a ter um sentido político, quando, para nós ali da areia, sempre foi apenas um dia de mar, família e começo de verão. Quando eu era pequeno, esse tempo de verão tinha cheiro de mar e de casa alugada na praia. As nossas praias “selvagens” eram, principalmente, Tamandaré, Carneiros e Maragogi. 

A maioria dessas casas era alugada por um personagem muito especial na minha vida: meu tio e padrinho, tio Marcos Lisboa. Ele era o maestro dessas férias. Um sujeito muito animado, agregador, que gostava de ver a família reunida, as crianças correndo, a casa cheia de barulho bom. Eram férias fantásticas que ele promovia para nós, quando eu ainda era muito pequeno. As casas eram simples, muitas vezes literalmente na beira do mar, com areia entrando pela porta e sal grudado nas paredes. A gente passava o dia inteiro de calção de praia, pé descalço, pele coberta de sal e de sol. A programação era quase sempre a mesma - e era perfeita: banho de mar, brincadeira na areia, cochilo em rede, mais mar, mais conversa, mais nada. E era justamente nesse “nada” que morava uma felicidade imensa. O almoço era um capítulo à parte. Quase sempre tinha uma macarronada fumegante com carne moída, que depois do mar virava banquete. De vez em quando alguém fazia um fogo no quintal ou na própria areia e assava uma carne, um frango. E, às vezes, o cardápio vinha direto do oceano: um pescador dali mesmo aparecia com um peixe fresco, recém-tirado da água. A gente comprava, limpava ali mesmo, temperava como dava e botava no fogo. O cheiro do peixe assando na brasa se misturava com a maresia e com o barulho das ondas - para mim, esse era o verdadeiro perfume do verão. Um pouco mais adiante, já adolescente e depois pós-adolescente, o verão ganhou outra cor. Eu ia para a beira da praia jogar frescobol. 

A manhã inteira, raquete na mão, a bola riscando o ar, o corpo acompanhando o movimento das ondas. Naquela época não havia essa profusão de ambulantes, vendedores de bebida, caixas de som em cada canto. A praia era quase só da gente. Depois do jogo, a gente sentava na areia com os amigos, com as meninas, e passava o resto do dia ali, jogado, conversando sobre tudo e sobre nada. Foi nessa fase do frescobol que começaram as primeiras paqueras. Ali nasciam as namoradinhas de verão, os casazinhos improvisados à beira-mar. Um olhar que demorava um pouco mais, um sorriso meio tímido, o convite para sentar mais perto na roda, o mergulho a dois, a caminhada curta que virava longa. Nada muito planejado, tudo muito simples, mas ali a gente aprendia, sem manual nenhum, o idioma delicado das primeiras aproximações. Os dias pareciam não querer terminar. A tarde custava a cair e isso mudava tudo. Em vez de “já está tarde”, a gente pensava: “ainda dá tempo”. Dava tempo de mais um jogo, mais um banho, mais uma conversa comprida, mais uma tentativa de segurar a mão de alguém no comecinho do escuro. 

E tem uma coisa que só quem mora perto do mar percebe: no verão, o vento muda. O que antes vinha do sudeste passa a ser vento nordeste, entrando pela cidade como quem abre as janelas e areja a casa. Esse vento novo limpa o mar. A água parece mais clara, mais acordada. Aparecem mais peixes, o mar fica mais vivo: cardumes riscando a superfície, aves mergulhando certeiras, jangadas voltando mais pesadas de histórias e de pescado. O oceano, que já era presença, vira personagem. O mar, aliás, sempre vai ter uma conotação muito importante na minha vida. Não é só cenário: é memória, é consolo, é companhia e é promessa. O amor da minha vida mora lá, está junto das sereias, misturada à espuma e aos segredos das profundezas. Muitas vezes, quando fico olhando o horizonte, me pego perguntando em silêncio: - Será que um dia eu estarei lá de novo? Enquanto não descubro a resposta, sigo do lado de cá da areia, tentando honrar esse amor e esse mar: vivendo os verões possíveis, ouvindo o vento nordeste mudar de direção, lembrando das casas simples de Tamandaré, Carneiros e Maragogi, das macarronadas com carne moída, do peixe do pescador na brasa, de tio Marcos Lisboa rindo alto, das primeiras paqueras em Boa Viagem e dos abraços de sol que já não precisam de festa nenhuma - só de um pedaço de praia, um pouco de silêncio e um coração atento. Se o ano fosse um livro, o verão seria o capítulo em que a história desce para a areia, entra no mar e, na hora de voltar, ainda fica um pouco na beira, só para olhar o horizonte mais uma vez.


----------------------------------------

 

Os artigos publicados nesta seção não refletem necessariamente a opinião do jornal. Os textos para este espaço devem ser enviados para o e-mail cartas@folhape.com.br e passam por uma curadoria antes da aprovação para publicação.