opinião

Quem equilibra o desequilíbrio?

Atendendo a pedidos formulados pelo partido político Solidariedade e pela Associação dos Magistrados do Brasil, nas ADPF’s nrs. 1259 e 1260, o ministro Gilmar Mendes ordenou, “cautelarmente”, a suspensão de parte dos efeitos da lei de impeachment, vigente desde 1950, para proibir que qualquer um do povo, eventualmente, peça o impedimento de ministros do STF, papel que deveria caber, segundo S.Exa., apenas ao PGR (o atual ocupante do cargo foi - ou ainda é - sócio do ministro em uma instituição de ensino).

Considerando-se o histórico de corporativismo da Corte, a liminar, certamente, será confirmada no mérito e tornará praticamente impossível o impedimento de ministros do STF, nada obstante não estejam, os seus fundamentos, respaldados na Constituição. É o ponto de vista do ministro. Nada mais, nada menos.

Dessa maneira, dita decisão, que tem nítido traço de autoblindagem, atenta contra o equilíbrio dos poderes e impede o sistema de freios e contrapesos de funcionar amplamente, já que legisla em lugar do parlamento e restringe o papel do Senado, a quem cabe admitir, ou não, processos de impedimento de ministros do STF, pedidos esses que, nos termos da lei, podem ser apresentados por qualquer cidadão.

Não restam dúvidas, também, que a ordem judicial em apreço ofende a soberania popular, invertendo a lógica de que, se “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”, nada pode ser mais legítimo do que se garantir ao cidadão comum o direito de questionar ministros e outras autoridades quaisquer.

Ademais, é igualmente evidente que inexistem requisitos à liminar, pois não há quem possa enxergar “urgência”, muito menos “fumaça do bom direito”, no ato de suspender uma lei de 1950, que já serviu de norte ao impedimento de ex- presidentes da República, sem qualquer tipo de contestação, muito menos quanto a sua constitucionalidade.

Ora, se essa lei, já tão antiga e testada, valeu para afastar presidentes da República, eleitos por escolha popular, por qual motivo, repentinamente, não deveria valer para ministros do STF, que são investidos em seus cargos sem receber nem um voto sequer?

Será que cabe a um servidor público, ainda que de alta hierarquia, escolher os termos da lei que regula o processo destinado a apurar as suas responsabilidades?

Além de seus próprios defeitos, e da evidência de ser inexplicável que um partido político, assim como uma associação de magistrados, pleiteiem algo tão absurdo, outro sério problema dessa decisão é que ela não é propriamente um fato novo ou um erro judicial isolado.

Trata-se de mais um ato, muito grave, que aprofunda o cenário disfuncional, que se iniciou, com o inquérito das Fake News, em 2019, e está a desvirtuar a Corte, ofendendo a democracia e o
estado de direito, por se tratar de circunstância anômala que se ordinarizou, assim como pelo efeito sistêmico de suas irregularidades.

Desse modo, se há algo de “novo” nesse episódio, é que, desta feita, a decisão em questão “atingiu” interesses de agentes políticos, igualmente poderosos, que se julgavam imunes a essa indesejável ampliação do espectro de atuação do STF.

Aliás, muitos dos que somente agora manifestam espanto e reclamam, são os mesmos que, por ação ou omissão, despreocupados pelo fato de que as pessoas antes afetadas, pela escalada arbitrária do STF, eram suas inimigas ou adversárias, apoiaram, como se normal fosse, a anabolização de nossa Corte constitucional.
Talvez seja tarde para a indignação seletiva que ora se propaga.

Como um rio que saiu de seu leito, o STF se acostumou a mandar sem limites, livre de qualquer resistência institucional e de críticas da chamada grande imprensa.

Sendo assim, no ponto em que está, a Corte dificilmente retomará o seu curso natural, pois, além de já ter ido longe demais, outras instituições e autoridades, inclusive as responsáveis por acionar os “freios e contrapesos”, utilizaram-se dessas distorções, como “arma política”, para perseguir adversários e se consolidar no poder, estando, portanto, comprometidas, “até a medula”, com tudo de errado que vem acontecendo.
Trata-se de algo realmente muito sério e de consequências bastante negativas.

Isto porque, ao mesmo tempo em que afrontam o ponto mais fundamental da República, o desequilíbrio e a desarmonia dos poderes, ora vivenciados, não são disfunções, jurídica e política, meramente abstratas, posto que afetam, o povo e o país, concretamente, dado que disso decorrem, em grande parte, a desordem, a instabilidade e a imprevisibilidade de nosso sistema de justiça, a colocar em risco direitos e garantias individuais, bem como a integridade da ordem jurídica em geral.

E sabem o que há de mais paradoxal em tudo isso?
A quebra dessa “espinha dorsal” da República está sendo causada exatamente por quem se autopermitiu atuar fora das regras, ao argumento de que isso seria necessário para impedir que violações como tais viessem a acontecer.
Tomara que o Brasil aprenda, de uma vez por todas, que não há retórica capaz de impedir a realidade de “cobrar o seu preço”, muito menos existe “justa causa”, onde a lei e a Constituição são afrontadas, sobretudo quando a ofensa vem de quem tem o dever de tutelá-las.

* Sócio do GCTMA Advogados, procurador aposentado do Estado de Pernambuco, conselheiro de Administração/IBGC.


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