opinião

Entre a saudade e o obrigado (Entre Soledad e Gracias a la Vida)

Houve um tempo em que eu andava por dentro feito a própria canção “Soledad”, de Jorge Drexler. Quem conhece a música sabe: é aquele clima de noite longa, coração atravessado por uma distância que não é só física, é uma distância por dentro. Eu me reconhecia ali, nesse desenho de vazio, nesse mundo em que a solidão quase vira personagem, senta ao lado da gente e parece que não vai embora nunca. 

A casa estava arrumada, mas o silêncio era maior do que os móveis. As lembranças pesavam mais que os planos, e eu me sentia vivendo uma espécie de estrofe repetida: dia após dia, o mesmo sentimento, o mesmo aperto, a mesma sensação de estar caminhando sozinho em uma rua vazia. Rezava, reclamava, perguntava a Deus: “Por quê comigo? Por quê agora?”. E, ainda assim, lá no fundo, havia um fio de fé teimoso, segurando minha mão sem que eu percebesse direito.

Com o tempo – esse grande compositor silencioso – fui entendendo que aquela fase era também um trecho de Soledad dentro da minha história. Um movimento mais lento da partitura, um tempo suspenso da vida. A música falava de um estado da alma, e eu vivi esse estado intensamente. Mas nenhuma canção é feita de uma frase só. A vida também não. 

Devagar, fui saindo desse território de sombra. Fui descobrindo que a solidão, por mais dura que seja, às vezes é um intervalo necessário, uma espécie de sala de espera onde a gente se reencontra com a própria essência. Comecei a perceber sinais de cuidado no caminho: uma conversa na hora certa, um amigo que aparece, um convite, um sorriso, uma lembrança que passa a doer menos. Chamem de Deus, de Vida, de Mistério; eu chamo de cuidado.

Hoje, quando olho para o meu momento atual, percebo que a trilha sonora mudou. A música que canta dentro de mim está muito mais próxima de “Gracias a la Vida”, composta por Violeta Parra e eternizada na voz de Mercedes Sosa. Aquela canção que agradece pelos olhos que veem o mundo, pela voz que pode falar e cantar, pelos passos que seguem adiante, pelo coração que ainda bate firme depois de tantas tempestades.

Se antes eu só conseguia ouvir o eco da solidão, agora escuto outra orquestra: escuto os gritos e as risadas das minhas netas pequenas e do meu netinho, enchendo a casa de vida. Eles correm, inventam histórias, brigam, fazem as pazes, pedem colo. 

O barulho deles é música nova: é como se cada gargalhada fosse um verso de Gracias a la Vida tocando na sala, agradecendo pela infância viva que corre pelos corredores, pelos pequenos pés descalços, pelos brinquedos espalhados no chão. Onde antes morava o silêncio pesado, agora mora um barulho bom, desses que cansam o corpo e aquecem o coração.

E não é só isso. Hoje também acompanho, quase como um espectador privilegiado, o dia a dia do casal – minha filha e meu genro. Vejo o trabalho deles, os planejamentos, os sonhos, a motivação de construir uma vida melhor para a família. 

Em muitos momentos, reconheço ali a rotina que eu vivi com a minha esposa: as conversas sobre o futuro, as contas, os medos, as esperanças, as pequenas vitórias de todo dia. É como assistir à continuidade de uma história que começou lá atrás comigo e que agora segue em outras mãos, com o mesmo desejo de amar, de lutar, de seguir em frente.

É nesse cenário que “Gracias a la Vida” faz ainda mais sentido para mim. Não apenas como uma canção bonita, mas como um estado de espírito. A música fala de uma gratidão que abraça tudo – luz e sombra, alegria e dor – e eu me reconheço nessa atitude de agradecer à vida que me deu tanto: deu-me amores, deu-me perdas, deu-me filhos, deu-me netos, deu-me novas manhãs depois de noites difíceis. A solidão deixou marcas, é verdade. Mas hoje ela é só um capítulo, não é mais o livro. O que já foi Soledad pura, hoje é memória de travessia. A dor virou parte da minha história, não o meu destino.

Eu aprendi a olhar para o meu caminho com mais ternura, a valorizar cada amanhecer, cada café compartilhado, cada abraço que eu ainda posso dar, cada voz que me chama de pai, de avô, de amigo. Entre Soledad e Gracias a la Vida, entre a saudade e o obrigado, eu entendo melhor a estrada que percorri: – saí do quarto escuro, – atravessei a noite longa, – e cheguei a uma casa cheia de risadas, de vozes, de planos, de netos correndo descalços, de um casal jovem construindo a própria história sob o mesmo teto em que eu reaprendi a viver.
 



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