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Nara Leão, girassóis e gerações (Final)

Como tudo na vida, também na música as gerações se sucedem. Em 1962, o jovem Edu Lobo fez um pedido para o poeta e diplomata, Vinicius de Moraes. Que ele escrevesse o texto da contracapa do primeiro compacto que Edu havia gravado na Copacabana. Vinicius o atendeu. E escreveu ousada mensagem acentuando a confiança que tinha na nova geração. 

Assim:
“Edu Lobo é, pois, o ponto extremo de uma nobre linhagem de compositores que vem de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Zequinha de Abreu e Pixinguinha e que vai desaguar nos mais jovens da bossa nova. Alguns dos quais somente agora põem a cabeça para fora, como Francis Hime, Marcos Valle, Edu Lobo. É. A garotada está aí mesmo para nos botar, a nós os velhos, para correr. Mas não há de ser nada. O importante é que se trata de uma mocidade sadia, atenta e responsável, que quer fazer boa música”.

Vinicius comparava os monstros sagrados da primeira geração de compositores: Tom Jobim, Carlos Lyra e Roberto Menescal. Com os três grandes novos compositores: Francis Hime, Edu Lobo e Marcos Valle. Em março de 1963, Vinicius e Carlos Lyra convidam Nara para cantar as canções da peça Pobre Menina Rica. No show, Vinicius narra a história a peça, cantando as músicas ao lado de Carlinhos Lyra e Nara Leão. Cada um com seu violão. Aloysio de Oliveira, na direção.

Para alguns, Nara era a menina rica. Criada de frente para o mar. Em crise. Mais interessada em descobrir a cultura popular. Do que nos prazeres mundanos de sua classe social. No show, Nara interpretou todas as canções para voz feminina. A temporada do show cumpriu seu período de três semanas. E Nara saiu convidada por Aloysio de Oliveira, dono da gravadora Elenco, para gravar seu primeiro disco, no qual constavam as canções Maria Moita e Berimbau.    

Estava feito, lavrado no cartório da opinião pública, o encontro entre cidade e morro. Morro e cidade. Entre o branco e o preto. Preto no branco. Encontro de que resultou mescla musical única. Original. Batizada no trópico. Com raízes seguras no samba tradicional. Que desceu o morro. E confraternizou, nas areias de Copacabana e de Ipanema, com os girassóis da bossa nova. E, na onda de protestos dos anos 60, festejou a rebeldia feita de talento de Nara. Uma Leoa.    

Talvez seja possível arriscar, como escreveu Hugo Sukman, a adoção de um conceito sobre música no Brasil. Estavam lançadas, ali, as sementes de projeto de uma música popular brasileira. Com linguagem musical própria. Melodia datada. Harmonia selada. Instrumentos específicos. Batida diferente. Compositores e intérpretes amadurecidos nos desafios da criação e da renovação. E nas dores da ditadura.

Talvez seja possível dizer que a bossa nova desatou um nó. Com uma certidão de nascimento que traz a batida rítmica de João Gilberto. A leveza do barquinho e do mar de Roberto Menescal. O lirismo genial de um diplomata que se realizou poeta, Vinicius de Moraes. A disciplina criativa de Edu Lobo, que levou o cheiro de sargaço da praia de Itamaracá para as areias de Ipanema.

Pois bem. Na esteira de suas estrelas, surgiu outro céu musical. Seguiram-se o Tropicalismo de Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Betânia. O rock brasileiro de Raul Seixas, Rita Lee e Legião Urbana. A floresta de passarins e águas de março de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1927-1994). E um sol. Que reuniu, ao seu redor, a voz de Frank Sinatra, o saxofone de Stan Getz e a regência de Klaus Ogerman.



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