opinião

Porque era ele, porque era eu

Eu voltei ao Brasil antes da anistia e também antes da minha família. Eram tempos incertos. Voltei para estudar, ainda jovem, com apenas 18 anos. Inscrevi-me em um colégio para aprender matérias relacionadas ao país, buscando compreender melhor a história e a realidade brasileira. 

No início, a experiência foi marcada pela solidão. Ninguém falava comigo, eu caminhava sozinho pelo pátio e, dentro da sala de aula, permanecia isolado. A sensação era de ser um estrangeiro em minha própria terra.

Poucos dias após a minha chegada, um estudante se aproximou e me perguntou, de forma direta: 

- Você é filho de Miguel Arraes?
- Sou, respondi hesitante.
Ele então explicou:  
- “Meu pai pediu para que eu me apresentasse a você e ajudasse como pudesse.” 

A partir daquele momento, minha vida mudou. Sentávamos juntos, conversávamos muito, e ele demonstrava enorme curiosidade pelas experiências que eu havia vivido. Esse estudante se tornaria meu melhor amigo: Antônio Carlos Figueira.

Figueira, como ele era chamado, esteve ao meu lado em todos os momentos. Não consigo recordar nenhum acontecimento importante da minha vida, bom ou ruim, em que ele não estivesse presente. Nossa amizade era sólida, construída sobre confiança, respeito e companheirismo. Éramos como irmãos.

Seguimos juntos na faculdade de medicina pela UFPE. Iniciamos a prática clínica no Hospital Pedro II, hoje incorporado ao Imip, e mais tarde, concluímos nossa formação no Hospital das Clínicas. Foram anos intensos, de dedicação e aprendizado, mas também de descobertas pessoais e de amadurecimento. 

Figueira compreendia minhas inquietações e compartilhava meus sonhos. Tinha uma curiosidade genuína sobre o mundo e sobre as histórias que eu trazia comigo. Ele foi parte essencial da minha vida, um irmão escolhido pelo destino. Sua figura permanece viva em mim, como um testemunho da força dos laços humanos.

Ao registrar estas lembranças e recordar esses anos, a memória que atravessa me turva os olhos. Sinto uma falta imensa de Figueira. Pergunto-me muitas vezes por que essa saudade é tão profunda. 

A resposta talvez esteja na frase de Montaigne ao se despedir de seu amigo La Boétie: 

“Porque era ele, porque era eu. Porque era eu e porque era ele.” 
 


___
Os artigos publicados nesta seção não refletem necessariamente a opinião do jornal. Os textos para este espaço devem ser enviados para o e-mail cartas@folhape.com.br e passam por uma curadoria antes da aprovação para publicação.