Popularidade, polarização e o risco de captura simbólica do Supremo
A recente pesquisa Genial/Quaest, divulgada neste último sábado, revela um dado que merece atenção cuidadosa: 36% dos brasileiros avaliam o Supremo Tribunal Federal negativamente, 33% positivamente, enquanto 24% classificam sua atuação como “regular”. À primeira vista, os números podem sugerir apenas mais um episódio de desgaste institucional em um país profundamente polarizado.
Uma leitura mais atenta, contudo, recomenda prudência — e alguma sofisticação analítica. Na literatura internacional sobre supremas cortes, resultados como esses costumam funcionar menos como vereditos e mais como indicadores de transição institucional — momentos em que a percepção pública de um tribunal começa a se deslocar do eixo técnico para o eixo político.
Estudos clássicos e contemporâneos distinguem, com cuidado, popularidade, aprovação e legitimidade. Tribunais não existem para serem populares; existem para decidir conforme o Direito, inclusive contra maiorias momentâneas. A legitimidade, porém, depende de algo mais profundo: a disposição social de aceitar decisões mesmo quando discordamos delas.
Esse ativo invisível repousa na confiança de que a Corte opera segundo critérios impessoais, previsíveis e institucionalmente contidos. Quando essa confiança se enfraquece, a queda de popularidade deixa de ser episódica e passa a sinalizar risco estrutural.
É nesse ponto que o dado da Quaest ganha densidade analítica. O fato de a avaliação negativa (36%) já superar a positiva (33%), ainda que por margem estreita, indica um ambiente de ambivalência institucional. Não se trata de rejeição maciça, mas tampouco de conforto reputacional. Em ambientes altamente polarizados, avaliações institucionais tendem a refletir associações políticas percebidas, e não apenas o conteúdo das decisões.
Parte dessa rejeição pode, sim, estar refletindo a fragilidade do governo Lula, sobretudo quando segmentos relevantes da sociedade passam a enxergar convergência política entre o Executivo e a Corte. Trata-se de um mecanismo conhecido: o desgaste de um ator político irradia para instituições percebidas como próximas, ainda que não haja alinhamento formal.
Mais revelador, contudo, é o contingente que classifica o STF como “regular” (24%). Esse grupo raramente é composto pelos eleitores mais ideologizados. Em geral, reúne cidadãos moderados, menos mobilizados pela guerra política cotidiana, ou mesmo eleitores que aprovam o governo, mas começam a manifestar desconforto com a atuação institucional do tribunal.
A experiência comparada mostra que é justamente esse segmento o mais sensível a sinais de excesso, falta de autocontenção ou ambiguidade ética. Quando ele se desloca, a rejeição deixa de ser setorial e passa a ser transversal — e os efeitos costumam ser rápidos.
A literatura sobre apoio público às supremas cortes é clara nesse ponto: crises de legitimidade raramente nascem nos polos mais ruidosos do espectro político. Elas emergem quando o centro — os indiferentes, os pragmáticos, os que aceitam perder desde que as regras sejam claras — passa a duvidar da distinção entre jurisdição e política. Se parte relevante desses 24% “regulares” migrar para a avaliação negativa, o Supremo pode entrar numa zona de rejeição ampla, na qual diferentes grupos sociais convergem não por ideologia, mas por desconfiança institucional.
Esse risco se agrava quando defensores circunstanciais da Corte optam por relativizar desvios éticos do presente em nome de uma estratégia política imediata. Aqui cabe um alerta direto: quem hoje defende o STF fechando os olhos para problemas éticos, apenas porque a Corte atua como barreira a adversários do governo, presta um desserviço profundo à própria instituição. A orientação ideológica do indivíduo é irrelevante — seja à direita ou à esquerda. Governos passam, maiorias se alternam, mas a Corte permanece.
A história recente brasileira ilustra bem esse ciclo. Durante o julgamento do mensalão e, mais tarde, no processo de impeachment de Dilma Rousseff, setores expressivos da esquerda atacavam o Supremo enquanto a direita o defendia.
No período Bolsonaro e nos anos subsequentes, o movimento se inverteu: parte da direita passou a hostilizar a Corte, enquanto setores da esquerda passaram a defendê-la de forma acrítica. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: a instrumentalização simbólica do tribunal conforme a conveniência política do momento.
A literatura comparada é praticamente unânime em apontar que esse padrão é tóxico. Supremas cortes que passam a ser defendidas ou atacadas exclusivamente pelo alinhamento de suas decisões perdem o amortecedor institucional que lhes permite atravessar mudanças de governo. A defesa incondicional hoje cobra um preço amanhã. Quando a maré política vira — e ela sempre vira —, a mesma Corte que foi protegida passa a ser alvo, agora sem o capital simbólico necessário para se sustentar.
Por isso, a discussão sobre ética judicial não é acessória nem moralista. Ela é estrutural. Regras claras de conduta, transparência nas relações privadas, vedação a conflitos de interesse e autocontenção institucional funcionam como seguro de longo prazo contra ciclos de polarização. Não servem para agradar governos nem para satisfazer opositores; servem para preservar a distinção funcional entre o tribunal constitucional e o jogo político ordinário.
A pesquisa Quaest, portanto, não deve ser lida como condenação nem como absolvição do STF. Ela é um sinal de alerta quantitativo: a Corte já opera em um ambiente de credibilidade frágil, no qual a rejeição supera a aprovação e uma parcela significativa do público permanece indecisa. Ignorar esse dado, ou interpretá-lo apenas pela lente da disputa política imediata, é repetir um erro que a experiência comparada já demonstrou ser custoso.
Supremas cortes não sobrevivem à base de alianças circunstanciais. Sobrevivem quando conseguem atravessar governos de sinais opostos mantendo algo raro na política: a confiança de que, independentemente de quem esteja no poder, as regras do jogo continuam as mesmas. Quando essa percepção se rompe, nenhuma estratégia de curto prazo é capaz de restaurá-la.
* Ph.D. em Ciência Política (NSSR – New York), doutor em Direito (FDR) e professor da UFPE.
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