Os caminhos da nossa alimentação
Há 50 anos, Câmara Cascudo entregava uma obra que até hoje dá sentido aos nossos hábitos e preferências alimentares
Se o historiador Câmara Cascudo vivesse nos dias de hoje, ele certamente escreveria algo sobre o valor dado à pressa. A mesma que impede "gastar" uns minutinhos à mesa. Tempo roubado. Limitado. Pressionado pelo relógio. O mesmo que, a certa altura do dia, não permite a noção além do valor nutricional de um ou outro ingrediente capaz de devolver o fôlego. É ato às vezes despercebido que faz do seu livro "História da Alimentação no Brasil", da editora Global, um clássico de meio século que expressa: “sim, comida é cultura”. Leia-se conhecimento e liberdade de todos os tipos.
A obra, munida de informações históricas e sociológicas, traz os elementos básicos da cozinha brasileira, sem esquecer seus mitos e folclores interligados. "Espero mostrar a antiguidade de certas predileções alimentares que os séculos fizeram hábitos, inexplicáveis como uma norma de uso, um respeito de herança dos mantimentos de tradição", diz um trecho entre as primeiras páginas.
O livro, patrocinado pelo jornalista Assis Chateaubriand, demorou mais de 20 anos para ficar pronto e somar mais de 900 páginas e algumas reedições. Ganhou, então, ares de estudo documentado.
"O Brasil tem uma sociedade muito elitista e sua literatura também é muito elitista, basta ver que nese campo da alimentação o tema alimentação popular só vai aparecer com ele, nos anos 1960. Antes disso não se fala de alimentação popular a não ser eventualmente como folclore ou hábitos ligados à religião", defende o sociólogo Carlos Alberto Dória, também vice-presidente do Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo (C5).
Não é à toa que este é um nome à frente de um grupo que se reúne eventualmente em São Paulo para discutir gastronomia em suas diversas nuances. "Não quer dizer que a obra dele seja objeto, mas, sim, uma homenagem dentro da nossa intenção de debater a culinária brasileira. E ele é o fundador desse conceito na nossa história", completa.
Raio X: Quem foi Câmara Cascudo?
Nome: Luís da Câmara Cascudo
Nascimento/Falecimento: 1898-1986
Origem: Natal, Rio Grande do Norte
Atuação: historiador, antropólogo, jornalista, advogado e escritor
Curiosidades: seu primeiro livro foi aos 23 anos: “Alma Patrícia”, de 1921, um estudo de 18 escritores e poetas do seu Estado; foi professor de Direito Internacional Público, na Faculdade de Direito do Recife
Algumas publicações: “Geografia dos mitos brasileiros”, de 1947; “Os holandeses no Rio Grande do Norte”, de 1949; “A cozinha africana no Brasil”, de 1964; “Prelúdio da cachaça”, de 1968; “Antologia da alimentação no Brasil”, de 1977
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Como ele trata alguns alimentos:
Nos primeiros momentos do livro, a alimentação indígena passa por sua crescente descoberta. Da relação com os europeus até no manuseio primário do fogo - este, seu companheiro indispensável. “Deixaram ao brasileiro o conceito universal e milenar da ‘comida quente é que sustenta a gente’. Esfriou, estragou”, relata. A forma de assar, segundo o livro, era sobre três pedras típicas que agrupavam as chamas. A mandioca era onipresente. Já o milho tinha nas suas plantações a representação de um bom trabalho de plantio, já que ele só se reproduz sendo semeado.
Cardápio português:
Na chamada ementa portuguesa é fácil perceber a adaptação do português em terras brasileiras, com contribuições no domínio do paladar. É quando ele cita a valorização do sal e do açúcar. Curioso ainda perceber a rotina, com a mulher portuguesa aproveitando o ovo de galinha, até então ignorado por negros e indígenas. “A mão da cozinheira portuguesa deu preço às iguarias humildes, cotidianas, vulgares. Fez o beiju mais fino, mais seco, do polvilho, goma de mandioca, e molhou-o com leite”, detalha. Eis que se dá a transformação das verdadeiras riquezas nacionais. As bananas-da-terra ganharam espaço na doçaria, ao lado dos cajus e oitis.
Cardápio africano:
“É verdade que o negro veio para o Brasil mutilado em sua personalidade psíquica, reduzindo à escravatura (...) Mas, adverta-se, uma boa parte dos escravos era herdeira mental de grandes impérios negros (...)” justifica Cascudo ao falar sobre o poder de improvisação e recriação visto na parte de gastronomia e nas artes. Surge a caça mostrada como ofício de orgulho para a carne ser assada ou chamuscada. No cardápio está o pirão, prato que mais se come em Luanda, que leva óleo de palma, água, sal e peixe - como o pargo. Mas há referências ainda ao leite de coco e ao cuscuz.
Destaque para as frutas:
Elas têm um capítulo à parte, com testemunhos sobre sua apreciação ao longo dos séculos. É contexto que vale a observação de que algumas espécies, substitutas por outras rendosas, praticamente desapareceram, e que as espécies mais selvagens são marcadas pela força ácida e de gosto acre e picante. Eis alguns destaques do seu glossário:
Banana: “Recebemos a banana da África e havia uma variedade nativa brasileira, de nome ‘pacova’, sendo elas posteriormente confundidas”.
Caju: “A mais popular das frutas brasileiras. Contavam os indígenas os anos pela floração dos cajueiros, guardando as castanhas. Vinho inebriante para os indígenas do litoral ”.
Goiaba: “Não é natural desta terra, mas foi trazida da América Setentrional e do Peru”.
Jaca: “Na Índia, onde é nativa e vulgar, comem as sementes cozidas ou assadas, e muito pouco a polpa adocicada, porque é de difícil digestão”.
Manga: “Nativa da Índia, todo sul e leste da Ásia, prestando-se a uma infinidade de iguarias, molhos, conservas, é de viva participação popular contemporânea. Encontra-se por toda a África Oriental e Ocidental litoral, e interior, constituindo elemento sensível no cardápio negro”.
Maracujá: “Entre os indígenas tupis era comum ver-se a trepadeira nas vizinhanças das malocas. Passou abundantemente à África”.
Melancia: “Nativa e registrada em estado selvagem pela África Austral e Tropical, de onde veio para o Brasil no século XVI, sendo amplamente plantada e apreciada pelos indígenas como era pelos africanos”.
Defesa da obra:
“Embasamento que Gilberto Freyre antes ensaiava com o livro ‘Açúcar’. Lembro que fiz um mergulho evolutivo passando a entender a importânciadas duas contribuições”.
Gilberto Freyre Neto
(Sociólogo e historiador)
"Ele tem um trabalho de folclorista. Não que isso seja menos ou ruim, mas é um trabalho de registro daquilo que ele via e estudada na intenção de que não se perdesse".
Frederico Toscano
(Historiador e pesquisador sobre alimentação)
"Câmara Cascudo, em História da Alimentação, nos ensina sobretudo que cada grupo escolhe seus alimentos a partir do ambiente em que vive, e a partir das muitas heranças que recebe".
Maria Lecticia Cavalcanti
(Escritora e especialista em gastronomia)
"Esse é um livro pioneiro e que não tem substitutos. Atravessa o tempo e continua um clássico usado como referência principalmente por quem se interessa no contexto da alimentação".
Renata do Amaral
(Jornalista e pesquisadora de gastronomia)
Elementos básicos:
“Fazer um prato não é apenas unir técnica e ingrediente. É preciso mais. É preciso contexto. E Cascudo lembra a significação histórica, geográfica e cultural em torno da comida, que devem acompanhar a trajetória de qualquer chef, logo a partir da sua formação”.
Robson Lustosa
(Chef e professor dos cursos de graduação e pós-graduação de gastronomia)
“Chama atenção as descobertas de que os hábitos pernambucanos estão mais voltados para uma cozinha portuguesa do que para a indígena e que a influência africana quase não nos afetou diretamente aqui. Já no Brasil como um todo, ele mostra que somos uma miscigenação de doações e trocas, que nos fizeram tomar coisas que hoje são nossas, com nossa brasilidade, mas que não nos pertencia anteriormente”.
Claudemir Barros
(Chef de cozinha)
Mandioca: não é à toa que existe um capítulo só sobre essa raiz apelidada por Cascudo de “Rainha do Brasil”. Popular e indispensável aos indígenas e europeus recém-instalados, há neste alimento uma legitimidade funcional: “saboroso, de fácil digestão e substancial”, segundo o autor, que também destaca a farinha como seu subproduto de prestígio popular. É riqueza nas mãos das sertanejas que da goma, em meio a alguns processos, origina beijus ou tapiocas.
Feijoada: uma boa dose de história faz o feijão ganhar seu mérito. Em Portugal ele aparece em documentos do século 13, levado para a Europa depois do descobrimento da América. No livro ele aparece notável por historiadores e pensadores acerca de sua procedência. “Em Portugal e na África Ocidental e Oriental o feijão não tem a procura, a indispensabilidade, a predileção com que é consumido no Brasil”, pondera sem deixar de lembrar o gosto pelas dobradinhas, da feijoada lusitana e do caldo de carne.
Arroz: alimento suplementar comum, mas não indispensável. Já parou para pensar nisso? Pois essa é a definição de Cascudo para a forma como o arroz foi sendo visto ao longo dos anos, “como quem saúda um amigo vulgar no mecanismo da obrigação diária”, compara. Mas isso não diminui a sua função como sobremesa tipo o arroz-doce, considerada a mais antiga aplicação no plano da doçaria que se vulgarizou pela Europa e América.
Açúcar: base da doçaria portuguesa, o açúcar tem boa parte da sua história ligada ao domínio árabe. Por isso, o livro lembra que os bolos de mel e o alfenim, por exemplo, são presenças árabes em Portugal. “O açúcar ampliara a doçaria, fazendo-a variada, determinando as espécies procuradas e provocando vocações inventivas”, diz um trecho. É introdução para os “quatro doces históricos” revelados em um capítulo.