Recife tem riachos urbanos em situação crítica
Influenciados pela urbanização, mais de 100 cursos d’água que cortam o Recife perderam, ao longo dos anos, perderam suas formas naturais
Poluídos pelo descarte incorreto do esgoto, assoreados, concretados até perder a forma natural e virarem canais, de odor incômodo, propagando doenças e causando problemas em época de fortes chuvas. Essa é atual situação de boa parte dos mais de 100 riachos que cortam o Recife e alimentam rios como o Capibaribe, Beberibe e Tejipió, e que em nada se assemelham aos cursos d’água que serviam à população há 50 anos. “Era a felicidade de todos os meninos. Tomávamos banho, pescávamos”, explica Leonardo Rocha, 59 anos, que cresceu no entorno do riacho do Parnamirim, hoje conhecido como canal do Parnamirim, presente no bairro homônimo, assim como em Casa Forte, entre outras localidades da Zona Norte da Cidade.
Leonardo cresceu ao lado do vizinho Severino Araújo, 56. Juntos, eles lembram como o riacho era não apenas fonte de lazer, mas de sobrevivência para os moradores da área. “Quando faltava água, o que era muito comum há uns 55 anos, a gente ia com os latões buscar nos olhos d’água”, lembra Severino. “Era mais de dez olhos. A gente também tomava banho no riacho, pescava beta, espada sangue, molinesia, guaru, muçum. Vinha de gente de longe pegar muçum aqui”, completa Leonardo. “A água era limpinha, brilhava. Coisa mais linda. Mas, chegaram os prédios, sumiram os olhos d’águas. E o riacho virou isso aí, parado, sujo.”
Eles contam que algumas pessoas ainda tentaram resistir à urbanização do riacho do Parnamirim. “Seu Zuca, já falecido, plantava umas árvores, tirava sozinho o lixo que aparecia aí dentro. Mas, em 1975, aquela época de Tapacurá, com as cheias e desabamento dos morros, muita gente veio para cá e levantou moradias às margens do riacho. Algumas famílias foram removidas, mas outras continuam aí. E aí a situação ficou ruim, num nível que não tinha mais o que ser feito”, lembra Leonardo.
Porém, ao contrário do que acredita Leonardo, o riacho ainda pode ser recuperado. É o que espera Jaime Cabral, professor da Universidade de Pernambuco (UPE) e Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde coordena o Grupo de Pesquisa de Recursos Hídricos. Ele acredita que no Recife existam mais de 100 riachos, que ajudam a alimentar os três principais rios da cidade, e ainda parte do rio Jaboatão, no município de Jaboatão dos Guararapes, e o rio Paratibe, no Paulista.
“Nós acompanhamos mais de perto o riacho do Cavouco, do Sítio dos Pintos e, principalmente, do Parnamirim, onde trabalhamos há 11 anos”, explica. Eles coletam amostras da água e fazem análises bacteriológicas e físico-químicas. “Também observamos a meiofauna, que são os animais que fazem parte do ecossistema aquático. E percebemos que lá, apesar de todo o esgoto que é despejado, existe vida. Algumas espécies conseguiram sobreviver. Se parar para ficar observando um pouco, é possível ver cágados, por exemplo, que sobem até superfície para respirar.”
Jaime comemora o fato de que boa parte das moradias irregulares que forma levantadas no local, já foram retiradas pela Prefeitura da Cidade do Recife (PCR). Ao todo, 192 famílias foram removidas para o Conjunto Habitacional Padre José Edwaldo Gomes. As demais, serão reassentadas no Conjunto Residencial Casarão do Barbalho, no Bairro do Detran, que está em fase de conclusão, com capacidade para 188 famílias, de acordo com Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana do Recife (Emlurb).
O professor acredita que, fazendo a remoção das demais moradias e cessando o despejo do esgoto, o riacho consegue ser renaturalizado em cinco anos. Ele aponta o lixo, o esgoto e ocupação indevida como as principais causas de destruição dos riachos, de um modo geral. “A questão do lixo depende muito de a prefeitura recolher o lixo que é jogado nesses locais, mas também educar a população, conscientizar a pessoa. Elas precisam entender que não podem estrangular esses riachos. O esgoto depende muito da Compesa. Temos a esperança de que a PPP com a BRK Ambiental contemple esse quesito, de fazer a instalação da coleta do esgoto e depois tratar isso ao longo de muitos anos. Mas, está indo muito devagar.”
A Parceria Público Privada (PPP) entre a Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) e a BRK Ambiental é considerada a maior no segmento de saneamento do país. Trata-se do Programa Cidade Saneada, que surgiu como uma alternativa adotada pela Compesa para aumentar a cobertura de esgotamento sanitário no Recife e Região Metropolitana. Para se ter uma ideia, apenas 35% do Recife possui esgotamento sanitário. No fim do prazo contratual de 35 anos, espera-se beneficiar aproximadamente cinco milhões de pernambucanos com esgoto. O total de investimentos previstos no Programa é de cerca de R$ 6,7 bilhões. Desse total, R$ 5,8 bilhões serão investidos pelo parceiro privado e R$ 900 milhões pelo Poder Público. A Compesa não respondeu sobre quando as localidades citadas seriam contempladas, mas disse que não tem responsabilidade de manter riachos e canais e que nas áreas onde os sistemas de esgotamento não tenham sido implantados, a população deve prover solução individual para garantir um tratamento pontual dos esgotos residenciais. Esse trabalho deveria ser submetido ao Estado e acompanhado pela PCR.
Um dos riachos mais agredidos, e que também é um dos maiores do Recife, é o do Vasco da Gama, que nasce no morro homônimo, no bairro de Casa Amarela e corta bairros como o Arruda, onde tem o trecho conhecido como canal do Arruda. Segundo a Emlurb, o canal do Arruda recebe normalmente duas ações de limpeza a cada 12 meses, em cada ação são removidas uma média de 2.500 toneladas de entulhos, a um custo médio de R$ 300 mil. A mais recente ação de limpeza no Canal foi realizada em fevereiro deste ano, quando foram retiradas mais de 2.400 toneladas de lixo. “Apesar de assustador, não é irreversível. Na Alemanha e na França, por exemplo, eram todos concretados, no fundo, nas laterais e ainda com tampa. Muita gente ainda pensa que concretar é sinal de progresso. Há 50 anos existia essa ideia na Europa. Há 30, eles tiveram essa consciência e começaram a fazer o processo inverso”, explica Jaime, na esperança de ver os riachos revitalizados.
A Emlurb informou que não há projetos de renaturalização para os cursos d’água no Recife. Disse ainda que os canais que cortam o Recife são limpos, pelo menos, uma vez ao ano. Os serviços englobam a retirada de resíduos, capinação e limpeza das margens. Todos os canais citados (Cavouco, Sítio dos Pintos, Parnamirim e Arruda) já foram limpos neste ano. “Era muito importante que a sociedade assumisse essa missão dos riachos. A população tem que defender, que os órgãos públicos abraçam a causa. Era importante que cada um tivesse um riacho para chamar de seu”, insiste o professor Jaime Cabral.
É o que também acredita o mestre de obras José Leonardo, de 60 anos. Ele vive desde que nasceu no entorno do riacho do Cavouco, no bairro do Engenho do Meio, Zona Oeste do Recife. “Crescemos tomando banho aí, pescando, principalmente muçum e pitú, uns camarões bem grandes. Era tudo mato, víamos animais. Tinha vida. Hoje está isso aí. Mas eu tento ajudar.” Ele construiu uma área de convivência, com uma biblioteca colaborativa, banco, plantas e árvores, tudo ao lado da neta Evellyn Gabrielle, de 11 anos, para quem ele quer deixar o exemplo como maior legado. “Fiz para impedir que as pessoas jogassem lixo no local. Fez parte da minha história, da minha infância. Gostaria de ver revitalizado algum dia.”
HISTÓRIA
O historiador e escritor Carlos Bezerra Cavalcanti, conta que os riachos, além e servir para a população do Recife há 50 anos, também foram importantes personagens na colonização da cidade. “O riacho do Parnamirim, que é o mais importante, levava até o Arraial do Bom Jesus e era crucial dentro da rede fluvial”, conta. Hoje, essa rede fluvial foi completamente modificada. “Os riachos estão assoreados, tapados, concretados, mas antes disso, serviam como caminhos.”
Cavalcanti explica que os riachos alimentam esses rios serviam como “estradas” na época da colonização. “No meio da mata, era por eles que se exploravam os locais. Únicos caminhos possíveis. Tanto que as casas, como no bairro da Madalena, são todas viradas para o rio e para os riachos, porque o transporte, tanto de pessoa quanto de carga, era feito por ali. Serviam como local de locomoção para as pessoas”, ressalta.
Quando os holandeses vieram para Pernambuco, segundo o historiador, eles tomaram conta da parte litorânea, e não adentraram o continente. “Ficaram muito ali próximo ao porto. E ali teve uma densidade demográfica que é considerada uma das maiores da história. Cerca de 3 mil pessoas numa localidade de menos de um quilômetro quadrado. Quando eles saiam dali para ir atrás de algo para se refrescar, de frutas, alimentos, essa locomoção era feita por meio dos riachos. O transporte fluvial sem dúvida foi o mais essencial nesse início.”
Alguns riachos deram nome aos bairros do Recife. “Nós tínhamos o Riacho da Água Fria, que deu o nome ao bairro, desde o tempo dos holandeses. As pessoas nem sabem disso. Assim como o Parnamirim, que na língua indígena tupi significa mar pequeno, que no caso é riacho.”