Ter, 16 de Dezembro

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Opinião

O papel do médico: entre a ciência relativa e a missão absoluta

Somos médicos. E isso, por si só, já carrega um peso que poucos realmente compreendem. Em nossas mãos repousam vidas. Com nossas decisões, podemos aliviar sofrimentos, prolongar existências, evitar tragédias. E, ainda assim, caminhamos em um país onde ser médico é, muitas vezes, um exercício de resistência. De fé. De obstinação.

Vivemos em um Brasil de paradoxos. Aqui, o desembargador se aposenta com 52 mil reais e um médico com 7 mil reais depois de trabalhar 35 anos.

O defensor público garante sua estabilidade com décadas de serviço. Delegados, promotores, auditores — todos têm seus espaços reconhecidos, suas remunerações protegidas. E o médico?

O médico, que acorda de madrugada com o toque do telefone, que não conhece feriado quando há urgência, que vive à beira do abismo das decisões difíceis, é jogado num sistema que o trata como peça descartável. Empurrado a plantões desumanos, a salários que mal condizem com a responsabilidade que carrega. Nós, que cuidamos do bem mais precioso — a vida — somos tratados como meros técnicos, como se a medicina fosse absoluta, como se houvesse uma fórmula exata para a dor, para o medo, para a morte.

Mas a medicina não é absoluta. É uma ciência relativa, humana, cheia de nuances, onde o saber se molda à sensibilidade, à escuta, ao tempo, à empatia. Cada paciente é um universo. Cada diagnóstico é um caminho tortuoso entre o saber científico e a sabedoria do olhar clínico.

E mesmo com tudo isso, ainda somos uma classe desunida.

Talvez porque, desde cedo, nos ensinem a competir, não a cooperar. Talvez porque muitos médicos ainda se iludam com a ideia do herói solitário, e não percebam que nossa força está no coletivo. Que apenas juntos poderíamos parar este país. Apenas unidos, poderíamos fazer o Brasil rever a condição do médico — e, por consequência, a condição da saúde pública.

Não se trata de buscar privilégios. Trata-se de buscar respeito. Reconhecimento. Condições dignas para exercer com excelência aquilo que juramos: cuidar do outro. E para isso, é preciso coragem. Coragem para romper o silêncio, para abandonar a omissão, para reconhecer que o individualismo nos enfraquece.

A medicina não pode mais ser um sacerdócio solitário. Precisa ser uma força viva, política, ética. Precisa levantar a voz. Porque quando um médico se cala diante da precarização, ele também está deixando que a sociedade adoeça.

E eu, que vivi a medicina em sua essência, que vi nascer o parto hospitalar em terras de resistência, que enfrentei o moralismo cego para defender o planejamento familiar, que lutei — com palavras, com ações e com alma — para que o sertão tivesse dignidade médica, digo: é possível transformar. Mas só se estivermos juntos.

Que essa reflexão sirva não como lamento, mas como chamado. Que ela desperte a consciência de que somos, sim, uma das classes mais poderosas deste país. Mas só seremos verdadeiramente poderosos quando soubermos o valor de nossa união.

*Médico, empresário, escritor.
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