Todo edital deve prever um sistema de cotas?
Entenda quando são obrigatórias, e seu mérito para medidas afirmativas no mercado de trabalho
Há algumas semanas, os pernambucanos foram impactados pela notícia da abertura do primeiro edital do Concurso Público Unificado do estado (CPU-PE). Porém, não foram as cerca de 460 vagas em diversas áreas que mais saltaram aos olhos, mas sim uma ausência: as cotas raciais.
De acordo com a lei nº 15.142/2025, é obrigatória a reserva de 30% das vagas em concursos públicos federais para pessoas pretas, pardas, indígenas e quilombolas. Ainda em certames federais, perante a Constituição, em seu decreto nº 9.508/2018, é preciso ter vagas também para pessoas com deficiência.
Além disso, de forma mais geral, os concursos prevêm isenção da taxa de inscrição para pessoas de baixa renda. Contudo, em seleções estaduais e municipais, não existem normativas padronizadas, cabendo ao arbítrio dessas unidades a decisão de incluir ou não o sistema de cotas, através de lei local.
Pernambuco
Em Pernambuco, a lei Estadual n° 14.538, de 2011, prevê a reserva de vagas destinada às pessoas com deficiência nos concursos públicos do estado. Mas, em relação às cotas raciais, ainda não existe uma tratativa formal para as seleções.
Considerando o artigo 39 do Estatuto da Igualdade Racial de Pernambuco (Lei 12.288/2010), sancionado em 2023, seria “dever do poder público promover ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive nas contratações do setor público”. Apesar de tal prerrogativa, o CPU-PE chegou ao público sem essa margem afirmativa.
Na opinião de André Albuquerque, professor de concursos e especialista em direito administrativo, mesmo na ausência de uma lei estadual que imponha a obrigatoriedade de cotas, publicar um edital que não as prevê pode ser juridicamente questionável.
“Não é ‘de bom tom’, sob o prisma jurídico-administrativo, publicar edital estadual que simplesmente ignora cotas raciais quando se sabe da desigualdade racial estrutural. Mesmo sem lei estadual específica, a administração pública deve pautar-se pelos princípios constitucionais da igualdade, moralidade e razoabilidade”, explica.
Diante desse cenário, o governo de Pernambuco recorreu ao envio de uma medida de urgência para a Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), a fim de criar uma lei formal para cotas raciais.
O PL 464/2023, projeto de autoria dos deputados estaduais Dani Portela, Rosa Amorim e João Paulo Costa, foi o escolhido para ver votado na casa, e segue a legislação federal da nova lei de cotas, determinando 30% das vagas destinadas à pessoas pretas, pardas, indígenas e quilombolas. O texto aprovado segue para sanção do poder executivo estadual.
“Elas [cotas] têm função corretiva e simbólica: corrigem desigualdades e valorizam a representatividade. A relevância é alta porque impacta quem entra no serviço público, o perfil das instituições e a legitimidade social do Estado. Contudo, sua eficácia depende de aplicação bem desenhada, critérios claros, transparência, fiscalização e adaptação constante”, opina André Albuquerque.
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Medidas afirmativas
Assim que entrou na universidade pública, em 2009, Niedja de Lima Silva não pôde ser contemplada pela lei de cotas, pois essa ainda não havia sido sancionada. Hoje, aos 36 anos, ela celebra o fato de ter feito parte dessa mudança. Niedja é uma mulher negra, do interior de Pernambuco, assistente social e doutoranda em serviço social.
Ela, que sempre almejou a área pública, decidiu enfrentar o desafio de prestar o primeiro Concurso Nacional Unificado (CNU), em 2024. Ao se inscrever na seleção, e optar pelas vagas dentro das cotas raciais, Niedja foi questionada se realmente acreditava se encaixar como cotista, por ser uma negra de pele clara.
Apesar desse episódio tê-la feito se questionar sobre sua própria identidade, a assistente social percebeu que, como o racismo também a afetava, ela tinha sim direito a essa ação afirmativa.
Hoje, Niedja percebe que a lei de cotas foi uma porta de entrada essencial para sua aprovação. Através do CNU, ela foi admitida no cargo de tecnologista para o Ministério da Saúde. Contudo, ainda que tenha alcançado a carreira desejada, ela precisa lutar diariamente para provar que as cotas não foram o “facilitador” em sua trajetória, mas sim uma medida de reparação histórico-social necessária.
“Eu conheci boa parte dessas pessoas negras que entraram comigo. [Eram] enfermeiras, doutoras em saúde coletiva, atuavam há 10 anos. Veja o nível de conhecimento dessas pessoas. Então de maneira alguma a gente tá querendo aqui falar sobre elas não terem capacidade”, explicou Niedja, que no concurso unificado que previa 14 vagas para a cota racial em sua área, ficou em 11° lugar, e conseguiu 95 pontos de 100 na questão discursiva.
Para a concursada, a lei de cotas foi uma conquista fundamental, mas precisa evoluir ainda mais. Niedja defende o aumento do número de vagas para cotistas, e a ampliação da obrigatoriedade dessa medida afirmativa nos editais de todo o país.
Além disso, ela acredita ser importante que os concursos montem bancas de heteroidentificação cada vez mais diversas e unam o sistema de cotas a outras ações, como acompanhamento mental, auxílio transporte e moradia, para manter os cotistas estudando e trabalhando com dignidade.
“Acho que o primeiro passo é a gente fazer essa reflexão enquanto pessoa negra. O segundo passo pra gente ir para uma banca de heteroidentificação é entender de colorismo. Como a banca vai me ver enquanto pessoa negra? Então, acho que é importante a gente entender minimamente como a lei de cotas funciona, como é a distribuição dessa banca”, aconselha outros concurseiros cotistas.
Seleção
No caso da escolha por cotas, o candidato precisa enviar documentos que comprovem a validade da autodeclaração da cota, como certidão de nascimento ou laudos, a depender do edital. Para as cotas raciais, também se deve passar por uma banca de heteroidentificação do fenótipo, baseado no regimento do IBGE sobre raça e etnia.
Se sua cota for negada, você pode ainda entrar com uma interposição de recursos administrativos contra o indeferimento.



