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Folha Gastronômica

Sabores da Independência (1ª parte)

Coluna da colunista de gastronomia Lecticia Cavalcanti

A família real não chegou ao Brasil por vontade própria. Mas apenas para fugir das tropas de NapoleãoA família real não chegou ao Brasil por vontade própria. Mas apenas para fugir das tropas de Napoleão - Greg Vieira / Arte Folha de Pernambuco

A família real não chegou ao Brasil por vontade própria. Mas apenas para fugir das tropas de Napoleão. À frente delas um velho conhecido da Corte portuguesa, o general Jean-Andoche Junot. Quando foi embaixador da França em Lisboa, registrou no seu diário o primeiro encontro que teve com o futuro rei de Portugal, D. João VI - “Meu Deus! Como é feio! Como é feia a princesa! Meu Deus! como são todos feios! Não há um só rosto gracioso entre eles, exceto o do príncipe herdeiro”. Esse príncipe era D. Pedro - I no Brasil, e IV em Portugal. Agora voltava Junot àquelas terras, três anos depois, em missão nada diplomática - invadir o país por ter ficado ao lado da Inglaterra, então em guerra com a França. Primeiro tomou Abrantes. Não pela quantidade de ouro que ali se extraía, nas areias do Tejo - daí vindo a origem latina do próprio nome da cidade, “Aurantes”. Mas por sua importância estratégica. Depois ainda receberia título de Primeiro Duque de Abrantes e acabaria se suicidando - mas essas são outras histórias. Certo é que de lá se preparava para as batalhas que contava enfrentar. E nessa espera, todos os dias, um emissário relatava a D. João - “tudo como dantes no quartel de Abrantes”.

Afinal chegou Junot a Lisboa, por uma das sete colinas que a cercam - o Alto de Santa Catarina. A tempo de ver partindo para o Brasil as 8 naus, 5 fragatas, 3 brigues, 1 charrua de mantimentos, 30 navios mercantes e 4 navios de guerra britânicos como escolta. À bordo D. Maria I - “a rainha louca”; seu filho e regente D. João VI; sua ninfomaníaca nora, Carlota Joaquina; mais o restante da família (inclusive D. Pedro), quase toda a nobreza e o clero. No total mais de doze mil homens, objetos de arte, 60 mil livros, manuscritos, móveis e pratarias. Junot coitado, daquele alto, ficou então “a ver navios”. Foi seu único infortúnio. Que, na cidade, não encontrou qualquer resistência.

Apesar de seu exército “mal armado, mal treinado, faminto e fatigado”, segundo Eduardo Bueno (em Brasil: Uma História). Se proclamou Governador Geral; e se instalou, com pompa e circunstância, no palácio do Barão de Quintela - onde  passou a exigir tratamento de Rei. Sua esposa, Laure Saint-Martin-Permon, recebia sempre com elegância. E sobretudo, especialmente naquela época, sabia cozinhar. Contam que ganhou do Coronel Restac, como presente, um livro de receitas das freiras dominicanas - saqueado da biblioteca do Convento de Alcântara, claro.  Adorou a lembrança. E passou a fazer receitas do livro em todos os banquetes oficiais do marido. Entre esses, o famoso doce de ovos e Perdizes à Convento de Alcântara, recheadas com fois gras e marinadas em vinho do Porto.

A culinária da aristocracia portuguesa não era então muito diferente da francesa. “Comia-se tão bem em Lisboa quanto em Versailles”, observou Alfredo Saramago. O que não chega a ser uma virtude. Que Napoleão dava importância secundária à comida. “Não sabia comer. Morreu ignorando um bom prato. Almoçava em oito e jantava em quinze minutos, impossibilitando-o de sentir sabor no que comia”, segundo Câmara Cascudo (em História da Alimentação no Brasil). Mesmo antes de Junot, “o francesismo invadiu as mesas portuguesas” - como bem observou Gilberto Freyre (em Açúcar). Tudo por conta de um cozinheiro francês contratado pela Corte, o mestre Lucas Rigaud. Foi uma revolução.

Rigaud substituiu o uso exagerado de condimentos (açafrão, anis, cárdamo, cominho, gengibre, malagueta) por ervas (alecrim, cerefólio, coentro, estragão, funcho e manjericão). Valorizou o consumo de aves, borrego, caças, carneiro, peixes, sopas. Além de presunto, para ele a única parte nobre do porco. Legumes também - aipo, alcachofra, aspargos e chicória. Deixou tudo registrado em O Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha (editado em 1780). Nesse livro, só para lembrar, apenas uma vez se refere à batata. Quando ensina que, “depois de cozidas em água e peladas, comem-se com molho de manteiga e mostarda”. Seja como for a família real já estava ao mar - sem mesmo pressentir que começava ali, naquela aventura, a Independência do Brasil.

(Continua na próxima coluna)

RECEITA:
Doce de ovos (do Convento da Ribeira)

INGREDIENTES:
500 g de açúcar
14 gemas de ovos
4 colheres de sopa de batata cozida e espremida
Canela em pó

PREPARO:
· Leve ao fogo o açúcar junto com 200 ml de água. Quando chegar ao ponto de perola (quando se molha uma colher na calda e, ao deixar escorrer, se forma uma pérola) junte a batata espremida, misture bem e deixe cozinhar por 10 minutos.
· Retire do fogo, junte as gemas (sem pele). Leve novamente ao fogo. Deixe cozinhar por mais 10 minutos.
· Coloque em travessa untada, polvilhe com canela e sirva.

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