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A consciência feminina em Ela Nasceu Lilás

Leila Tabosa é natural de Fortaleza-CE. A pesquisadora e escritora reside em Mossoró-RN onde atua como professoraLeila Tabosa é natural de Fortaleza-CE. A pesquisadora e escritora reside em Mossoró-RN onde atua como professora - Divulgação

Uma consciência feminina atravessa as narrativas de Ela nasceu lilás & outras mulheres (Podes Editora, 2024), livro de contos da escritora cearense Leila Tabosa. Mais que as histórias narradas – suas personagens, fatos e eventos nos quais se envolvem – está a paisagem emocional que circunda e acolhe cada história. Cada narrativa do conjunto é alinhavada por essa consciência, espécie de narradora e personagem oculta que atravessa o corpo narrativo. Tratar de compreendê-la e de desvelá-la se impõe como atitude necessária para apreender o livro em outra perspectiva – para além da coletânea de narrativas breves que o configura.

A escritora estadunidense Ursula K. Le Guin, no livro A teoria da bolsa de ficção, coloca em perspectiva a jornada do herói com o que ela chama de “a bolsa de ficção”, um recipiente metafórico no qual uma hipotética figura pré-histórica vai guardando sementes, gravetos, linhas, pedrinhas e tudo o mais que couber naquela sacola (ou bolsa, ou garrafa). A jornada do herói, segundo Le Guin, é a história do assassino, a história do conflito, da flecha ou da lança que atravessa o mamute ou o inimigo. A jornada do herói é uma jornada masculina por excelência. Por outro lado, as histórias contidas na bolsa de ficção, com suas inúmeras coisas que para uns parecem desimportantes, são prenhes de sentidos, configuram histórias de vida que não ornam com o pedestal que o herói necessita e busca. A bolsa de ficção, ao contrário, carrega histórias que não acabam, sendo histórias imbuídas de um outro tipo de energia, mais sensível, permanente e, por que não, feminina? Em Ela nasceu lilás, a “criatura” não parece ser outra que não essa consciência feminina, que recolhe, organiza, conta, lançando luz em episódios que merecem ser narrados e que urgem por leitura.

Recorro a essa imagem/conceito para perscrutar essa consciência feminina que percebo não apenas atravessar Ela nasceu lilás como também ditar o ritmo e a mirada do livro. Esta obra, como a bolsa de ficção, vai carregando consigo vidas que não se encerram no último parágrafo, ao mesmo tempo em que a “consciência” vai atuando como uma voz narrativa onisciente e onipresente. Voz que alinhava e dá sentido às diferentes histórias, fazendo-se existente em um tom simultaneamente memorialístico e testemunhal.

Claro, não se trata de um romance o livro - bem sabemos, pois estão lá diferentes personagens, enredos, aventuras e, principalmente, desventuras. Há ainda conduções diversas para narrativas únicas, no entanto, cada uma delas ligada inelutavelmente à condição da mulher no mundo, suas lutas, violências sofridas, glórias, alegrias e derrotas, que são conduzidas por essa voz: a consciência feminina que lhes dá contorno e que, entre luzes e sombras, é personagem e grande narradora. Uma voz singular que dá forma às protagonistas (e em certa medida se sobrepõe às vozes particulares que poderiam ter, é necessário dizer). A alegria da teoria da bolsa de ficção é que, para além do conteúdo, ela comporta qualquer forma. E não é outra coisa o que Leila Tabosa faz nas dezesseis narrativas que compõem o livro. Com grande liberdade a autora conta as histórias de que necessita por um viés que recria não apenas fatos e sentimentos, mas as noções de memória e do vivido.

Vejamos, pois, alguns momentos em que essa “consciência feminina” se dá a ver em Ela Nasceu Lilás. No conto homônimo ao título do livro, a protagonista, uma criança prematura, conta das agruras que precederam e acompanharam o seu nascimento. Como o feto do romance Enclausurado (Companhia das Letras, 2016), de Ian McEwan, a personagem narra o mundo dentro e fora do útero e ainda suas múltiplas ligações com a figura materna e outras personagens, mas, ao contrário dele, que é centrado no imediato e dotado de um olhar inaugural e algo cínico, há na personagem narradora feto uma percepção que atravessa o tempo e os limites físicos: ela está dentro e está fora, ela vê em perspectiva e não seria demasiado afirmar que talvez narre esses acontecimentos a partir da própria velhice. Do mesmo modo, no conto Meninas de Feira, a narradora, uma criança em situação de vulnerabilidade diz do seu encontro com uma boneca de pano vendida em uma feira, uma boneca feia, mas ao mesmo tempo desejada. Na narrativa, essa menina se miniaturiza, se confunde com a boneca, partilha do seu destino, mas o conta atravessada pela voz da experiência, com um léxico não infantil:

Então não era pela cor que eu achava Mariazinha feia. Mariazinha branca, vestida com a indumentária parecida às das outras bonecas de feira, mas sempre abandonada. Eu sou branca e só por isso me acham bonita, mas não sou. (Op. cit., p 35)

Como Celina, a boneca protagonista de Uma noite na praia (Intrínseca, 2016), de Elena Ferrante, a voz narrativa vai construindo o seu próprio desencanto e perplexidade em um crescente, em um processo de autoconhecimento e de percepção do mundo marcado pela perda da inocência. Esse é um movimento comum a outros personagens do livro Ela Nasceu Lilás, tais como Lady Dayanne, a filha do mundo, atravessada por doenças no conto A filha do mundo e da menina narradora que percebe a maldade e a intolerância no conto Aeroporto.

Essa consciência-personagem é construída e dada pelo tom memorialístico e íntimo que perpassa todas as narrativas, e é por isso que a sua voz se impõe. E embora muitas vezes o livro pareça uma escrita de si, caso fosse uma autoficção no sentido estrito do termo, talvez o livro não tivesse tantas camadas, tanta multiplicidade quanto apresenta. Em Vidas rebeldes, belos experimentos (Fósforo Editora, 2022) Saidiya Hartman emprega a narrativa íntima para modular a biografia de meninas negras e pobres nos EUA na virada do século XX: meninas despossuídas, apagadas da História. Ela adverte: “esta história é contada a partir do interior do círculo”. Essa tomada de ponto de vista é suficiente para recuperar a potência dessas vidas, o colorido de suas histórias.

Muito embora Leila Tabosa advirta para o fato de que os contos de Ela nasceu lilás são obras de ficção, elas também são contadas a partir do interior do círculo, configurando-se como histórias de carne e osso que, pela imaginação insurgente que é a linha mestra do conjunto, multiplica e pluraliza personagens que se dizem em voz alta. E, ao mesmo tempo em que a autora as singulariza, todas são uma; uma são todas; todas são as mesmas. Em Ela nasceu lilás, temos personagens que, como as garotas rebeldes de Saidiya, têm suas histórias recuperadas e, mais, ditas em primeira pessoa: existo, logo me narro, parecem dizer (ou contradizer). Suas histórias que fora da vida ficcional, na maioria dos casos, no comecinho dos dias, no máximo ocupariam uma nota na página policial, mas ganham nuances, matizes (para além do lilás) e, sobretudo extrapolam os limites do silenciamento a que, normalmente são circunscritas. E este é um dos grandes valores do livro de Leila e da tomada de posição narrativa escolhida pela autora.

Finalmente, retornando à imagem da consciência feminina como personagem e narradora onipresente de Ela nasceu Lilás penso que a ausência de construção de múltiplas vozes que se distingam umas das outras em cada protagonista, não depõe contra o projeto que sustenta o livro. Uma criatura, essa consciência-personagem-narradora, recolhe as histórias, reflete sobre elas, as conta e as reconta. Isso não é pouco. Há exuberância e beleza nessas histórias simultaneamente íntimas e coletivas e isso lhes dá ossatura, carne, sangue.

Micheliny Verunschk é escritora, crítica literária e historiadora brasileira. Autora de Geografia íntima do deserto; O Som do rugido da Onça; Caminhando com os Mortos, dentre outros escritos literários tanto em prosa quanto em poesia. Prêmio São Paulo de Literatura; Prêmio Jabuti; Prêmio Oceanos; Prêmio Biblioteca Nacional – Poesia (2021); Conto (2023); Romance (2024).

Leila Tabosa é natural de Fortaleza-CE. A pesquisadora e escritora reside em Mossoró-RN onde atua como professora. Leila possui Doutorado em Literatura Comparada (UFRN; UNAM/PDSE); Pós-Doc em Literatura e Teatro (UFC). Escreveu Soror Juana Poeta Cult (2023); Ela Nasceu Lilás & Outras Mulheres (2024) - dentre roteiros para teatro e dramaturgia. O Levante das Águas (2025) é seu livro de estreia na poesia.

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