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ENTREVISTA

"Se tivesse partido de Suape, Transnordestina já estaria em Belo Jardim"

Nesta entrevista, o engenheiro Maurício Pina faz importantes alertas sobre erros a concepção do ramal da Transnordestina em Pernambuco

O engenheiro Maurício Pina, em sua palestra no seminário Conexões Transnordestina, realizado em Belo Jardim, fez alertas para erros no projeto da ferrovia Transnordestina em Pernambuco/ Foto: Elvis Aleluia (ASCOM/Sudene)O engenheiro Maurício Pina, em sua palestra no seminário Conexões Transnordestina, realizado em Belo Jardim, fez alertas para erros no projeto da ferrovia Transnordestina em Pernambuco/ Foto: Elvis Aleluia (ASCOM/Sudene) - Foto: Elvis Aleluia (ASCOM/Sudene)

O engenheiro Maurício Pina, professor da UFPE e referência nacional em transportes e infraestrutura, já atuou em projetos como o Plano Diretor do Recife e é autor de obras sobre a história da BR-232. Atualmente, desenvolve um estudo para a angolana BDM, responsável pela construção de um ramal ferroviário conectado ao histórico Caminho de Ferro de Benguela.

Estudioso da Transnordestina, tema sobre o qual já proferiu várias palestras, Pina participou do Seminário Conexões Transnordestina, realizado em Belo Jardim na última quinta-feira (25), pelo portal Movimento Econômico. Após sua apresentação, ele concedeu entrevista exclusiva à jornalista Patrícia Raposo, que coordena a série de encontros, trazendo análises críticas sobre o traçado da ferrovia e seus impactos para a economia pernambucana. Confira a entrevista:

Patrícia Raposo (PR) – Na última semana, o governo federal anunciou a licitação das obras do trecho da ferrovia Transnordestina entre Custódia e Arcoverde. Como o senhor avaliou essa notícia?
Maurício Pina (MP) – A licitação do trecho Custódia–Arcoverde é importante, claro. Mas há um problema de concepção. Não é só esse trecho, há também o de Cachoeirinha até Belém de Maria. O ponto central é: esses trechos estão sendo executados sem que o mais estratégico, que é o trecho Belém de Maria–Ribeirão–Suape, tenha sequer projeto, licenciamento ambiental ou desapropriações. Está zerado.

PR – E como isso impacta o desenvolvimento da obra?
MP – Historicamente, se constrói ferrovia do porto para o interior. Assim foi feito no século XIX, quando a ferrovia começou a ser construída em 1881. Chegou a Belo Jardim em 1906, depois a Serra Talhada em 1957 e a Salgueiro em 1963. Sempre do litoral para dentro. Agora, está se fazendo o contrário. O trecho Salgueiro–Custódia, por exemplo, está pronto há anos. Se tivesse sido construído de Suape para o interior, já teria chegado a Belo Jardim e estaríamos transportando baterias automotivas e outras cargas do Agreste ao porto e vice-versa.

PR – Então, esses novos trechos vão demorar a ter utilidade?
MP – Claro! Os trechos vão ficar prontos, mas não haverá trem circulando porque a linha não chegará ao seu destino final: o porto. E, com o tempo, a infraestrutura se deteriora. São investimentos vultosos, mas que não cumprem sua função logística.

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PR – Há alguma tentativa de alertar os órgãos responsáveis sobre essa lógica equivocada?
MP – Sim. Já falei com representantes da Infra S.A. em reuniões promovidas pela Sudene e nestes seminários Conexões Transnordestina realizados pelo próprio portal Movimento Econômico. Acredito que falta diálogo com o meio técnico local — CREA, universidades, imprensa. O projeto está sendo elaborado em Brasília, distante das realidades regionais.

Transnordestina - Pernambuco

Trecho da ferrovia Salgueiro-Suape que está construído. Foto: Movimento Econômico

PR – Quais outros pontos do projeto o senhor considera problemáticos?
MP – Além da lógica da construção em trechos isolados, há a questão da bitola ferroviária. O trecho do Ceará é feito em bitola mista — larga (1,60m) e métrica (1,00m). Isso permite maior flexibilidade, pois trens de diferentes tipos podem trafegar. Em Pernambuco, a ferrovia é apenas em bitola larga, o que limita sua operação e eleva os custos.

PR – Qual o impacto prático dessa escolha de bitola para a ferrovia em Pernambuco?
MP – A bitola larga encarece tanto a construção quanto a operação, já que exige plataformas e túneis mais largos, e trens mais robustos e pesados. É mais adequada para cargas de alta densidade, como minério de ferro, embora haja exceções, como a ferrovia Vitória-Minas, em bitola métrica, que consegue transportar grandes volumes desse material e ainda mantém um dos poucos serviços de passageiros do Brasil. Aqui, temos cargas importantes — milho, combustíveis, baterias — mas que não exigem esse tipo de bitola. Imagine que você queira transportar uma geladeira do Recife para Belo Jardim. Você pode usar uma caminhonete ou uma carreta. Qual sai mais caro? A carreta, evidentemente. A mesma lógica se aplica aqui: usar bitola larga para cargas que caberiam bem na bitola métrica encarece desnecessariamente a operação.

PR – Outro ponto debatido no seminário Conexões Transnordestina foi a distância do traçado ferroviário em relação às áreas produtivas. O senhor estudou isso?
MP – Sim. Estive no DENIT e confirmei que o traçado da ferrovia passa a 16 km de Belo Jardim. Antes, falava-se em 40 km, mas o número atual é esse. Não sei explicar o que houve. De todo modo, é longe. O ideal é aproximar a ferrovia das áreas de produção. Caso contrário, será necessário usar caminhões para o transbordo até os trilhos, o que encarece a logística.

PR – O senhor realizou estudos sobre as cargas que poderiam ser transportadas pela Transnordestina?
MP – Fiz um estudo a pedido do SENAI. Estudamos dois produtos: gipsita e baterias automotivas. A gipsita, produzida no polo gesseiro do Sertão, tem um volume extraordinário. Poderíamos ter cinco trens por dia, com 50 vagões cada, chegando a Suape. As baterias, produzidas em Belo Jardim, também têm potencial. Seria possível um trem a cada dois dias, com 25 vagões, indo até o porto — para exportação nacional e internacional.

PR – Mas com o traçado distante, o custo se eleva…
MP – Exatamente. Você acaba fazendo o transporte de caminhão da fábrica até a ferrovia — o que é ineficiente. A lógica do traçado deveria ser pensada para beneficiar Pernambuco, mas não é isso que se vê.

transnordestina

Traçado da Transnordestina em relação a Belo Jardim/Fonte: acervo Maurício Pina

PR – O senhor aponta outro problema que tende a tirar a competitividade da ferrovia pernambucana frente à cearense: um trecho com rampa acentuada.
MP – Existe um trecho entre Salgueiro e Suape, com 88 km, que tem uma rampa muito íngreme, o que exige o uso de uma terceira locomotiva auxiliar, conhecida como helper (do inglês help, ajuda), apenas para garantir a tração dos trens. Essa exigência eleva significativamente os custos operacionais e pode desestimular o transporte pela rota pernambucana, apesar de essa rota ser 82 quilômetros mais curta do que o percurso até o Porto do Pecém.

PR – O relevo dessa região é diferenciado?
MP – Não. Mas é, no mínimo, estranho que haja essa rampa.

PR – Pode ter sido algo intencional no projeto, um erro estratégico, digamos?
MP – Eu não quero afirmar isso. O terreno não justificava esse traçado com rampas tão acentuadas. Outros engenheiros também questionam isso. Pode não ter sido má-fé, mas prejudica muito Pernambuco. O fato é que essa “locomotiva de plantão” torna a logística aqui menos competitiva.

PR – Ainda é possível mudar esse cenário, reverter esse trecho?
MP – Sim, tecnicamente é possível. A obra ainda não está concluída. Mas minha área não é a política. Minha missão, como engenheiro com 50 anos de experiência, é alertar. Desde o ano passado, já dei mais de 15 palestras sobre a Transnordestina. Faço isso por dever cívico. Não me sentiria em paz vendo um projeto errado ser implementado sem me manifestar.

PR – Na sua visão, a Transnordestina está virando uma ferrovia para o Ceará?
MP – Sim. Eu costumo chamar de “Transcearense”. Atende mais ao Ceará do que a Pernambuco. Faltou protagonismo político aqui. E estamos colhendo as consequências.

PR – O senhor está envolvido em projetos internacionais também. O que faz em Angola?
MP – Estou desenvolvendo, junto com o engenheiro Fernando Jordão, um projeto para o Caminho de Ferro de Benguela, em Angola. Somos contratados pela empresa BDM, uma estatal angolana. Estamos projetando um ramal de 3 km que ligará essa ferrovia a uma plataforma logística na província de Huambo.

PR – E qual o objetivo desse ramal ferroviário?
MP – Escoar a produção agrícola e mineral para o Porto de Lobito — o maior porto de Angola. Um dos produtos mais exportados é o abacate, inclusive processado em óleo. O principal comprador é a Holanda.

PR – Como o senhor vê o avanço das ferrovias no mundo?
MP – A China é o grande exemplo. Se você comparar um mapa ferroviário da China de 15 anos atrás com o atual, é um choque. O ritmo de investimentos é alucinante. Portos, rodovias, ferrovias — eles estão transformando completamente sua infraestrutura. É por isso que se tornaram uma potência global.

PR – E o Brasil?
MP – O Brasil estagnou. Temos hoje a mesma extensão ferroviária de 100 anos atrás. São 30 mil km de ferrovias, igual a 1925. É inadmissível. Meu pai tinha um livro chamado Cadernos do Nordeste, de 1925. Lá consta que Pernambuco tinha 924 km de ferrovias em operação naquele ano. Hoje, temos zero. Nenhum trem de carga circula no estado.

PR – A que atribui esse cenário?
MP – Faltou visão estratégica e compromisso com a infraestrutura. Pernambuco liderava o transporte ferroviário no Nordeste há um século. Hoje, está fora do mapa. Enquanto não resolvermos esse gargalo, o Brasil continuará sendo um país com ambições de desenvolvimento, mas que nunca sai do papel. Em 1981, quando eu era diretor da Secretaria de Transportes, Energia e Comunicações do Estado, havia um prefeito do sertão que vinha toda semana ao Recife pedir a construção de estradas. Um dia, já impaciente, perguntei: “Prefeito, nesse distrito tem escola?” Ele respondeu que não. “E posto de saúde?” Também não. Então questionei por que ele só cobrava estradas e não reivindicava professores ou médicos em outras secretarias. A resposta foi simples e certeira: “Doutor, se eu não levar a estrada, não levo nem a professora, nem o médico, porque não tem como chegar até lá.” A sabedoria desse homem me marcou profundamente e mostrou, na prática, a verdade da frase de Agamenon Magalhães“Primeiro as estradas, o resto elas darão.”

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