'Estamos vivendo uma ortopedia de guerra nos grandes centros de trauma', diz médico sobre acidentes
Após aumento no número de acidentes de moto, rede pública abriu setores para tratar de traumas do trânsito
De residente a chefe da emergência do Hospital Municipal Miguel Couto na década de 1990, o ortopedista Marcos Musafir enfrentou as mais diversas crises envolvendo traumas: dos acidentes de trânsito envolvendo carros à violência do Rio. Incomodado com o que via diariamente nas salas de cirurgia, decidiu ampliar sua atuação para mudar a realidade que encarava: participou e coordenou diversas campanhas no trânsito, como a que defendeu a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança e a Lei Seca. A nova missão agora é reduzir o o número de acidentes como motos no país, que levou a ortopedia a se tornar uma especialidade de guerra, como ele mesmo define. Com a campanha “Na moto não mate, não morra”, da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia, da qual é membro, ele alerta sobre a necessidade de criar uma “vacina” para os acidentes envolvendo motociclistas.
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Você participou das principais campanhas nacionais de trânsito. Estamos no momento de pensar uma para as motos?
Os motociclistas e seus passageiros são as vítimas mais vulneráveis do trânsito. Até uns anos atrás era o pedestre. Por isso, a preocupação hoje no Brasil com o fenômeno social da motocicleta. Estamos testemunhando uma quantidade enorme de vítimas, e cada vez mais graves. Por isso, queremos fazer um alerta para evitar que, em vez de eles usarem um bisturi, fiquem com a vida preservada. Já existe um o Plano Nacional de Redução de Vítimas de Trânsito (Pnatrans). Agora está sendo construído um exclusivamente de motos, o Pnamotos. Estamos entrando na discussão científica e técnica, para a gente conseguir, rapidamente, em alguns meses, mudar um pouco o panorama das vítimas das motocicletas no Brasil.
Mas o que tornou as motos esse gigante problema de saúde pública?
É multifatorial. O principal deles é um fenômeno social da pessoa sempre achar que com ela nunca vai acontecer o acidente. E na pandemia descobriram uma possibilidade de aumento de renda. Foi o tempo que você ficava em casa, mas o motociclista trazia a você o remédio e o alimento, por exemplo. E cresceu. Como? Infelizmente, desorganizadamente. Não se previa que isso fosse crescer de tal forma. E, paralelamente, não aumentamos os leitos de ortopedia no Brasil e os recursos para tratar essas vítimas.
O que pode ser feito?
A gente precisa de uma “vacina” para as motos. O que é essa “vacina”? A prevenção da doença. Vou dar um exemplo básico. O maço de cigarro não tem aquela foto da pessoa com câncer na boca, toda acabada? É uma linha que pensamos para o futuro das motos: que o alerta seja colocado nos aplicativos, seja colocado na hora de se comercializar um veículo. A nossa provocação é para as pessoas pensarem mais nas consequências negativas disso. Claro que tem o prazer da moto, tem a chegada da pizza quentinha, o remédio na hora, mas pode acontecer um sinistro nesse caminho. Que pode ser fatal.
As campanhas educativas têm esse poder de mudança?
Certamente é melhor do que não fazer nada. Estamos vivendo as tragédias das famílias destruídas. Qualquer acidente de trânsito é evitável: 92% são fruto das falhas humanas. Outros 4% são culpa do ambiente, como manutenção do veículo e vias ruins, e o restante, problemas de fiscalização.
Por que há tantos perigos com as motos?
A motocicleta não tem cinto de segurança, por exemplo. O impacto é a própria pessoa, infelizmente. Os motociclistas têm que ter essa consciência de que eles estão colocando a vida em risco. E a gente não quer que isso aconteça.
O que acontece com o corpo num impacto durante um acidente de moto?
Um copo cai de uma altura pequena no chão, quebra em dois pedaços. Se um copo cair de uma altura maior, ou seja, ele vai ter mais velocidade na queda, vai quebrar em vários pedaços. Isso acontece no osso em acidentes de alta velocidade. A energia do trauma penetra ali e vai destruindo as estruturas.
Qual a relação da velocidade com a intensidade das lesões?
A cada 1% que você aumenta na sua velocidade na motocicleta, você aumenta em 4% a chance de, caso ocorra uma colisão, ter mais lesões graves, comparado com um carro. Você tem 17 vezes mais chances de ter uma lesão a 50km/h numa moto do que a 50km/h dentro de um carro.
E qual o impacto desses acidentes no sistema de saúde pública?
Há de fraturas simples, em que a pessoa passa por uma rápida cirurgia e internação a amputações, esmagamentos e até degola. As cirurgias mais complexas dobraram nos últimos anos, principalmente das vítimas politraumatizadas com diversas lesões. São pessoas que precisam de mais de uma cirurgia, atendimento de várias especialidades e passam por CTI. Demoram mais e é um tratamento mais caro. Estamos consumindo recursos da saúde que eram voltados para uma prótese de uma senhora de idade e direcionando para o trauma. E nós estamos vivendo uma ortopedia de guerra nos grandes centros de trauma do Brasil. No Rio, por exemplo, você tem o Hospital Estadual Alberto Torres, em São Gonçalo, com 300 cirurgias por mês de politraumatizados de motos.
Quais são as consequências sociais desses acidentes?
Gera pobreza porque se ele afetando a renda da família. Terá que passar por um grande período fazendo uma reabilitação e poderá não conseguir voltar a andar ou até trabalhar. Então, destrói a vida da pessoa.
E como fazer que as regras de trânsito sejam respeitadas?
É preciso sensibilizar. Pega o rapaz que comete a infração e coloca ele uma semana no plantão da emergência empurrando vítimas de trauma para fazer exame e o centro cirúrgico. Precisamos criar também uma lei para que o motociclista se sinta valorizado, respeitado e acolhido. Talvez espaços onde possam parar para tomar banho, ir ao banheiro, beber uma água e tenha vídeos de direção defensiva passando no local.

