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OPINIÃO

A dor de uma mãe em Santa Maria da Boa Vista: quando o perigo mora ao lado

Após cinco dias de buscas, as forças de segurança encontraram o corpo da adolescente Ingrid Vitória, de 13 anos, com sinais de violência, em uma área de mata, na zona rural de Santa Maria da Boa Vista.

A adolescente foi sequestrada quando voltava de Curaçá, na Bahia. Ela, o irmão de 3 anos e a mãe pegaram carona com um vizinho até o povoado de Caraíbas, na zona rural de Santa Maria da Boa Vista, no Sertão de Pernambuco. Perto do destino final, o homem agrediu e amarrou a mãe, em seguida, levou a Ingrid no porta-malas do carro.

Apesar de ser prematuro concluir que o sequestro (planejado) teve fins sexuais, uma carta encontrada em uma mochila do suspeito revelou que ele possuía uma obsessão de cunho sexual pela adolescente.

O caso chama atenção em razão do crescente número de feminicídios e crime sexuais contra meninas no Brasil - em 2023 o país bateu recorde de feminicídios e registrou um estupro a cada seis minutos (Atlas da Violência 2023 - Ipea).

O que torna esse caso ainda mais perturbador é que o homem, que acabou sendo localizado e morto em um confronto com a polícia, não era um estranho, era uma pessoa próxima, que gozava de confiança da família e não apresentava sinais de perigo imediato.

No entanto, os dados revelam que o mal, às vezes, tem rosto familiar: em mais de 84% dos casos de crimes sexuais praticados contra vítimas de 0 a 13 anos, o agressor é conhecido da vítima e pertence ao seu círculo social, incluindo familiares, vizinhos, amigos ou conhecidos (18º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

De forma ainda mais assustadora, estudos citados pelo psiquiatra Geraldo Ballone, professor com mais de 40 anos de atuação na área, revelam que a maioria dos agressores sexuais — cerca de 70% — carrega consigo transtornos de personalidade, entre eles, a parafilia e a psicopatia, sem apresentar qualquer sinal de loucura aparente. São homens que convivem em sociedade, mantêm aparência de normalidade e escolhem cometer crimes com plena consciência da dor que causam ao próximo.

É justamente por isso que a orientação às famílias deve ir além dos velhos conselhos de “não fale com estranhos”.
É preciso ensinar como reconhecer sinais sutis de manipulação e aproximação abusiva, para que a confiança natural das famílias não seja explorada por quem age com crueldade.

Martha Stout, autora de Meu Vizinho é um Psicopata (2010) e membro do corpo clínico da Harvard Medical School por mais de 25 anos, ao lado de outros especialistas internacionais como Anna Salter, Ph.D. em Psicologia Clínica pela Universidade de Harvard, e Robert D. Hare, renomado psicólogo criminal e criador da Psychopathy Checklist – Revised (PCL-R) — instrumento amplamente utilizado em todo o mundo para identificação de traços psicopáticos — revelam, com base em evidência clínica e criminológica, uma série de sinais sutis de manipulação, aproximação abusiva e dissimulação.

Esses sinais têm a finalidade de orientar às famílias para identificar possíveis predadores que agem sob uma máscara de normalidade e conquistam a confiança antes de atacar:

1. Ajuda excessiva e não solicitada: insistem em ser úteis, dar presentes, oferecer caronas ou favores, mesmo quando não solicitados. A ideia é que, ao oferecer favores ou presentes constantemente, o predador coloca a vítima numa posição onde se sente desconfortável em recusar futuras investidas ou em pedir para ser deixada em paz (dívida emocional);

2. Rapidez na intimidade: buscam ganhar a confiança da família e da criança com elogios, presentes ou apelidos, como forma acelerar o desenvolvimento de laços íntimos com a família e, principalmente, com a criança;

3. Invasão emocional disfarçada de carinho: este sinal se manifesta quando o indivíduo tenta se aproximar da criança sem a presença ou supervisão dos pais, buscando conversas privadas, toques que podem parecer "afetuosos", mas são inadequados ou elogios que focam excessivamente na aparência ou em características íntimas da criança;

4.  Manipulação emocional: predadores são mestres em manipular as emoções de suas vítimas para ganhar controle e silenciá-las. Eles podem usar frases como "você é especial" ou "ninguém entende você como eu" para criar uma falsa sensação de exclusividade e dependência emocional na criança;

5. Ignoram limites com naturalidade: outro sinal de alerta crucial é a falta de respeito pelos limites estabelecidos pela família ou pela própria criança. Predadores podem não dar importância a sinais de desconforto, zombar de regras impostas pelos pais ou tentar contornar a autoridade da família com aparente naturalidade.

Os especialistas também recomendam aos pais algumas atitudes importantes para facilitar o reconhecimento de situações de risco, entre elas, ensinar as crianças a reconhecer e relatar comportamentos que as deixem desconfortáveis — mesmo de pessoas conhecidas; manter diálogo constante e aberto com seus filhos, no qual eles se sintam seguros para relatar qualquer comportamento estranho.

Ingrid Vitória não foi vítima de um monstro escondido nas sombras, mas de alguém que sorriu, ajudou e se aproximou com disfarçada gentileza. É um chamado urgente para que o Estado, as famílias e a sociedade compreendam que o verdadeiro perigo muitas vezes não grita — ele sorri e oferece carona.


* Autor do livro “O Brasil prende demais?”. MBA em Gestão de Segurança Pública, com atuação voltada ao enfrentamento da criminalidade violenta e à proteção de vítimas vulneráveis.

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