A música como porta para o sagrado
Sempre me impressionou o poder da música de atravessar a alma e nos conectar a algo maior. E falo de sagrado no sentido mais amplo da palavra: aquilo que tem valor profundo para cada um de nós, que pode estar dentro de um templo ou no simples ato de ouvir uma canção que nos emociona.
A música nunca foi um detalhe da experiência religiosa. Ela estrutura rituais, dá corpo às orações, fortalece comunidades e acompanha a espiritualidade no dia a dia. Na Índia, é entendida como a ordem do próprio cosmos. No budismo tibetano, guia a meditação. No judaísmo e no cristianismo, ecoa nos salmos e hinos. No Islã, pulsa nas recitações do Corão e nas chamadas para a oração.
Esse tema, porém, recebeu pouca atenção nos estudos acadêmicos de religião. Rudolf Otto e Gerardus Van Der Leeuw já apontavam, no século XX, a força do som na experiência espiritual. Mais tarde, a monumental Encyclopedia of Religion, organizada por Mircea Eliade, resgatou a importância da música, trazendo verbetes que a situavam no coração das tradições religiosas. Hoje, esse campo se abre de forma mais clara, seja nos estudos sobre a música nas religiões, como mostra Guy Beck em Sacred Sound, seja nas análises sobre a religião na música popular, como defende Michael Gilmour em Call me the Seeker.
Entre os pesquisadores brasileiros, um dos artigos que serviram de base para esta reflexão que você lê agora é de Arnaldo Érico Huff Júnior, doutor em Ciência da Religião pela UFJF e em História Social pela UFRJ. Ele se dedica a mostrar como música e fé caminham juntas em tradições diferentes, revelando dimensões que a palavra sozinha não alcança. Esse olhar ajuda a perceber que o sagrado pode estar em um canto litúrgico, mas também em músicas que marcam nossa vida.
Outro nome fundamental é o de Silvério Pessoa, professor do mestrado e doutorado em Ciências da Religião da Unicap, artista reconhecido internacionalmente e pesquisador da relação entre religião e música. Estar sob a orientação de alguém que vive a música e a pesquisa acadêmica nos dá a chance de aprofundar esse diálogo de forma única, ligando teoria e prática, análise e emoção.
Seja no toque de um tambor, em um cântico de terreiro, em uma sinfonia sacra ou em uma canção popular brasileira, a música revela o que a linguagem comum não dá conta. Ela é ponte entre mundos, capaz de nos conduzir a lugares de pertencimento e transcendência. Basta pensar como artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Raul Seixas ou Renato Russo traduziram em suas canções perguntas existenciais, angústias e esperanças que são também espirituais.
O desafio, agora, é fazer com que esse campo receba a seriedade que merece dentro das ciências da religião. Afinal, compreender a relação entre música e sagrado não é apenas estudar sons ou liturgias, mas tentar captar como o ser humano, em qualquer tempo ou lugar, encontra formas de expressar e viver aquilo que considera mais valioso.
A música, afinal, não cabe apenas nas partituras ou nos templos. Ela pulsa em nós e nos lembra, a cada acorde, que o sagrado, religioso ou não, continua sendo parte essencial da vida.
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