Deepseek e a corrida para o fim do mundo
A indústria de tecnologia dos Estados Unidos entrou em pânico desde que a versão mais recente da DeepSeek, a IA de uma startup chinesa de mesmo nome, apresentou desempenho semelhante aos concorrentes americanos.
O detalhe é que a Deepseek demanda muito menos processamento de dados e energia para fazer o mesmo que o ChatGPT (OpenAI), Gemini (Google), Llama (Meta) e demais. Daí porque as análises apontam que a chinesa revolucionou a estrutura básica dos modelos de IA.
Só que um olhar mais atento sugere outras conclusões. Como em toda tecnologia nascente, já era esperada uma redução de custos à medida que empresas menores fizessem engenharia reversa das IAs desenvolvidas pelas big techs, como fez a Deepseek.
Além disso, os métodos de treinamento aplicados pela Deep Seek (como o reinforcement learning) foram desenvolvidos por empresas e universidades norte-americanas. A façanha da startup chinesa é o emprego desses mesmos métodos de forma mais eficaz que as concorrentes.
Disso tudo, revolução mesmo é que a primeira empresa a fazer isso seja chinesa, justo quando os americanos acreditavam que o país oriental estaria muito atrás na corrida das IAs. E agora?
Os empresários do Vale do Silício se valerão da ocasião para enquadrar a evolução das IAs como uma competição contra a China. O objetivo é claro: impedir que os chineses deem o passo seguinte a fim de criar técnicas revolucionárias por conta própria.
Já que isso se alinha perfeitamente às preocupações com a soberania nacional que orientam as políticas do Donald Trump 2.0, há três cenários previsíveis.
Em primeiro lugar, por mais que a Deepseek tenha inaugurado a possibilidade de treiná-las a custos menores, Trump está disposto a despejar recursos para a evolução das IAs a título de atrair talentos e explorar técnicas ainda mais avançadas (e mais difíceis de copiar). Exemplo disso é o Stargate, um megaprograma de investimentos na casa dos US$ 500 bilhões, recém-anunciado pelo presidente americano ao lado de Sam Altman, o CEO da OpenAI.
Ao lado disso, serão impostas restrições adicionais à venda de chips da norte-americana Nvidia para a China. Afinal, como alertou o vencedor do prêmio Nobel de Economia, Daren Acemoglu, em artigo publicado no Project Syndicate: “Embora o DeepSeek tenha treinado os seus últimos modelos com chips mais antigos e menos poderosos, ele ainda precisará de chips mais poderosos para alcançar novos avanços e expandir a escala”.
Por fim, a ascensão do Deepseek milita contra qualquer regulamentação que iniba o progresso acelerado das IAs. Se Joe Biden impôs exigências mínimas por meio de uma ordem executiva, Trump a revogou no primeiro dia e a tendência é que não coloque nada em seu lugar, em oposição à União Europa que recentemente aprovou o seu AI’s Act.
Sem dúvida que esta é a consequência mais perversa da ascensão da Deepseek: quanto mais pessoas interpretam as IAs como uma corrida contra a China, menos a segurança é levada em conta no desenvolvimento dos modelos.
Os laboratórios americanos têm muitas falhas, mas ao menos investem em métodos para o desenvolvimento de IAs com o mínimo de segurança – aliás, como Walter Isaacson conta em sua biografia de Elon Musk, o empresário abandonou a OpenAI porque a empresa insistia em técnicas de seguranças que retardavam a evolução dos modelos. Já a Deepseek não demonstra maiores preocupações quanto à segurança, o que já resultou em limitações ao uso do seu app em legislações mais rigorosas, como Austrália e Itália.
Os investimentos, a partir de então redobrados, devem acelerar a evolução dos modelos de IA nos próximos meses. Se o ritmo anterior já era motivo de preocupações por causa dos riscos envolvidos (manipulação de usuários, vigilância em massa, automação de empregos), tudo isso se multiplica em meio a uma corrida em que vale tudo para chegar primeiro.
* Advogado, filósofo e Diretor da Câmara de Inovação Brasil-Portugal.
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