O Gil da Preta
Noites de domingo são silenciosas. Algumas pessoas descansam da diversão do final de semana. Outras pessoas se preparam para a segunda-feira. E as ruas ficam desertas. Silentes. Aproveito sempre para ouvir esse silêncio. Vou à janela. Olho o Capibaribe que espelha luzes de estrelas. E absolve, em serena trajetória, agonias deixadas no rastro da tarde.
Vejo-me no rio. Como um cortejo de fazeres. Uma identidade batizada no chão que me adotou. Ciente de meus deveres. E de minha fé. Às vezes, chego a esquecê-la. Mas, algum dia, ela volta. Sem que eu a chame. Ela simplesmente vem. Para que eu cumpra meu papel. Enfrente minhas tribulações. E, restaurado na sua energia, minha sina, cumpro minha parte. E livro-me das dúvidas. Que atrapalhariam meu sono.
No ciclo da vida, nossas caminhadas quase sempre ficam incompletas. Por uma razão ou outra. Por nossas imperfeições. Ou por impedimentos circunstanciais. Mas, ainda assim, contamos nossa história. E o notável, no percurso, é que nossa completude não se exaure em nós. Porque somos parte de um todo. Então, precisamos de outro, ou de outros, para nos realizarmos. Completos.
Não estamos sozinhos. Nunca estamos. Temos companhia de entes queridos. E, mesmo distantes, uma estrada compartilhada com muitas outras pessoas. Esse é o maior dom que recebemos ao nascer. Somos pedaço de uma história comum. E é esse mistério que torna a vida maravilhosa. A beleza da vida é o estar com os demais. Por isso, devemos exercer a gratidão da companhia. No gesto. No olhar.
Esse sentimento me veio ao saber da despedida de Preta Gil. No noticiário, um trecho da reportagem mostra entrevista com ela. A certa altura, ela reproduz conversa com Gilberto Gil, seu pai. Quando ele diz:
- Filha, se tiver ficando muito pesado carregar essa carga, solte, relaxe, integre-se à natureza, entregue-se.
Confesso que nunca ouvira uma prova de amor tão desesperada. O amor paterno prostado, diante do sofrimento da filha. Um amor tão ferido, mergulhado em tal agonia, que é capaz de dizer: Vá ! . Paradoxo fatal. Entre vida e morte. Porque a ordem natural das coisas é que os pais vão primeiro. E, depois, vão os filhos. E Gil, pai extremado, espremido na dor, mostrou um amor doído. Tão dolorido, capaz de suportar a ausência para evitar a presença sofrida. Insuportável.
Tudo isso me levou a pensar. Estancar o sofrimento presente da filha significa também extinguir a dor do pai. E a tristeza da filha ausente, a um poeta sensível como Gil, é um recurso profundamente humano. Porque, com o tempo, é tristeza transformada em saudade. E não o ferimento doloroso e continuado da filha. Insuportável.
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