O mundo arlequinal. Ou a barganha ilegítima
O bufão era figura divertida. E para divertir reis e seus convidados. Cantavam, dançavam. Faziam malabarismo. E distribuíam gracejos. Vestiam fantasias coloridas. Bufões famosos foram Sommers, na Inglaterra de Henrique VIII (1491-1547). E Triboulet, na corte de Francisco I (1494-1547), da França. Na Itália, a Commedia dell’arte abriu espaço para os arlequins de Pirandello. O bufão era mais do que palhaço. Era quem, usando a sátira, criticava o rei.
Com o Iluminismo, veio o estudo da filosofia. O destaque para a razão e o racionalismo. Escritores e enciclopedistas. Rousseau, Voltaire, Descartes. A simetria filosófica substituiu a ironia da bufonaria. O que restou dos bobos da corte, do século XVIII em diante, foi caricatura. Figuras caricaturais. Cujo desalinhamento com a realidade se aproxima de cenário arlequinal. Mesmo em ambientes oficiais. Rosados ou brancos.
O mundo onde vivem bufões pode ser uma obra narcisista. Ou uma arquitetura autoritária. Ou uma mescla de ambas. Quando o êxito eleitoral lhes confere imensa amplitude de voo. Tal que os limites legais e de comportamento são jogados nas cestas do esquecimento. Eles não são exclusividade de regiões temperadas. Ou apenas de zonas tropicais. Mas próprios de quem tece plutocracia submissa.
Quando isto acontece, a ilegitimidade aparece. Seja como uso ilegítimo de política tarifária. Emitida sem formalidade. Via rede social. Seja como pretensão de alcançar objetivo ilegítimo. Na forma esconsa dita por Steve Bannon: “Derrubem o processo judicial que derrubamos o tarifaço”. Ameaça vazia? Barganha política?
De um modo ou de outro, inaceitáveis. Trocas comerciais tem suas regras. E relações de governo, na diplomacia, suas normas. Submetidas à soberania de cada país. Por exemplo: os Estados Unidos têm superavit comercial com o Brasil. Então, a tarifação é ilegítima. Por outro lado, numa República, a separação de Poderes é exigência constitucional. O Executivo não negocia com o Judiciário suspensão de processo. Principalmente, de outro país.
Figuras arlequinais parecem ficção contemporânea. Fazem rir. Mas também imprimem terror. E, igualmente, sentem temor. Quando surge, no horizonte da globalização, uma organização chamada BRICS. Com 40% da população mundial. E 30% da produção. E esta desponta como concorrente poderosa na geopolítica comercial. Com um risco adicional: a utilização de moeda ad hoc. Regional. Para operar os negócios dos países membros.
Figuras arlequinais arremedam tragédias shakespeareanas. Porque os Estados Unidos representam menos de 15% das exportações brasileiras. E a China é o maior parceiro comercial do Brasil. Já o impacto político do tarifaço no empresariado paulista parece não ter sido considerado. E começa a surtir efeito. Pela mudança de tom ouvido em São Paulo e Minas. Sem falar em quebra de patente de alguns produtos farmacêuticos.
Figuras arlequinais poderiam ser personagens de Orson Welles. Num filme sobre cripto moeda. Infelizmente, o grande diretor americano não viveu o suficiente para imortalizar a estória. Já bufões continuam ativos. Sonhando. Pensando em ressortes.
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