Sex, 05 de Dezembro

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opinião

Profanação do sagrado, sacralização do profano e a exposição do cordeiro

Parecem-me que esses tempos difíceis impõem mesmo situações muito delicadas, nos tratamentos de questões políticas. A partir do título deste texto, dentro do que creio ser a minha cota natural de sanidade, confesso não saber extrair o que possa ser pior, ou melhor. O danado disso tem sido acompanhar o exercício irascível de dados atores políticos em ações que exigem equilíbrio, pois costumam atuar nos limites da extravagância. 

De fato, a tal "liberdade de expressão", na intenção de ser um objeto de alcance, jamais foi tão ultrajada e dilacerada, na História do Brasil. Um "vale tudo" inescrupuloso parece ser bem maior que a nominação do "remake" da novela em cartaz, mesmo que aqui esteja na mera condição de obra de ficção para entretenimento. De fato, no mundo real, as agressões se dão nas duas vias, seja para profanar o sagrado ou sacralizar o profano, no mais simples sentido figurativo que seja posto à discussão.

Explico melhor e de forma objetiva: no fundo, a sociedade vive uma realidade, na qual tudo vale para subverter seus valores Humanitários. Uma conduta social que ignora a consciência das imperfeições humanas, manifestas por falhas, limitações e contradições. Tudo em nome de uma verdade falaciosa, por mais que expresse na sua essência natural, mínima e tolerável, alguma dose de soberba ou vaidade individual. 

Noutro entendimento, dentro de um dado padrão de normalidade, não há nada perfeito, seja no comportamento reativo dos humanos, ou mesmo, na postura decisória das instituições por eles geridos. Assim como não há o indivíduo infalível (entre profissionais, políticos, religiosos e outros), não existem também entidades tão diversas (partidos, igrejas, empresas e outras), que não processem seus próprios deslizes. O mundo sempre girou nesse jeito meio estúpido de ser.

Bem, nessa hora de tamanha reflexão sobre as diferenças que a vida nos impõe, trago à minha mente os versos de uma das mais geniais composições de Belchior. Por tudo que agora assisto, dada a ousadia dos meus ajustes na letra original, embalo-me num mero sentimento e confesso "estar cansado, do peso da minha cabeça", justo desses mais de 60 anos "passados, presentes, vividos, entre o sonho" e, infelizmente, tanta distopia (aqui posta por minha espontânea vontade). E sendo apenas um pacato cidadão "latino-americano, sem dinheiro no banco e parentes importantes", só me cabe revelar-se  impaciente, diante de tanta intolerância. Esquecem meus pares que democracia é ambiente contraditório e que, por isso mesmo, as instituições precisam se manter firmes nessa compreensão sobre diferenças. O cerne da questão não está  apenas dado pela falha de se desconsiderar uma percepção lógica, na qual as pessoas que formam os quadros e decisões, são passageiras. O fato pior está no ignorar que a natureza humana que conduz as instituições é digna de suas imperfeições. 

Considerado esse enredo como um princípio geral, coloco aqui dois pontos de vista, hoje de baixa tolerância e aceitação. De imediato, num breve olhar para algumas instituições basilares da democracia, percebo que estão profanadas por conta de um esforço para enfraquecê-la enquanto regime político. Por outro lado, realço o equívoco de se querer tornar sagrado tudo aquilo ou todo aquele que entende o sentido dos valores democráticos como algo subestimável e desprezível. 

Dentro do contexto institucional, admira-me o que dizem do STF. Por mais que a instituição e seus componentes possam contar com falhas naturais de ofício, o fato relevante, considerado pelo julgamento condicionado por outras instâncias institucionais, foi o enfrentamento de um erro histórico de brutal repetição. Refiro-me à reedição de um plano golpista, tramado a olhos vistos, com plena chancela do governo vigente. Seja por estímulos variados aos seus acólitos, acampados e performados, para agirem na intenção de derrubar o regime, como reação à primeira voz de comando. Seja, em adição, por conspiradores que já planejavam as estratégias de execução do golpe. Tudo bem organizado, entre atentados e encomendas de mortes. Um crime exponencial contra os pilares democráticos firmados pela injuriada Constituição.

E como ato final de toda essa trama, o registro consignado pelo desapreço ao mérito de um julgamento desfavorável. Eis aí a "cereja do bolo" que sempre pautou o golpismo nos livros de História: a impropriedade da  defesa de uma anistia ampla, geral e irrestrita. É a evidente consagração do enfraquecimento das punições, que deveriam ser postas como educativas. Ou seja, consagra-se o ápice do jeito brasileiro de sacralizar o profano. Sem que, anteriormente, profanar o sagrado fosse o verbo a ser conjugado. 

Dito tudo isso, como fica essa tal exposição do cordeiro, descrita em título? Bem, é claro que, onde quero chegar, representa algo bem além do que a mera semelhança semântica com aquele evento de animais expostos, que ocorre no afável bairro do Cordeiro. Minha lembrança aqui é outra e me remete a uma configuração diferente, que também vem da velha infância. Justo aquela que se origina das histórias de lobos malvados, com todos temores que cercavam suas presenças. Mais precisamente, por amedrontarem pacatos e simpáticos cordeiros.

Noutras palavras, a esperança que resta do pós-julgamento, não pode mais tolerar que, no bojo de perdão, os velhos lobos continuem a se vestir de cordeiros. E daí queiram efetivar a eterna superação da alcateia sobre a carneirada. Nem muito menos, esses lobos deverão seguir seus próprios instintos e, sem disfarces ou subterfúgios, eliminarem os cordeiros. Nesse retrato figurativo e na extrapolação para o plano real, o importante é que os cordeiros se imponham como simples cordeiros. Que os lobos tenham meios mais cordiais para serem saciados. E que cada agrupamento siga uma trajetória respeitosa nas suas diferenças. Tudo numa ambiência democrática, como deve ser.
 


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