Trump pressiona América Latina a endurecer guerra às drogas
Consumo de cocaína na Europa cresceu 60% na última década, e novos mercados surgem na Ásia e na Oceania enquanto EUA tentam conter crise do fentanil
Eleito sob a promessa de impor lei e ordem aos Estados Unidos (e além), o presidente Donald Trump tem pressionado países da América Latina a endurecer a guerra às drogas no momento em que organizações criminosas turbinam suas atividades para atender à alta demanda na Europa e nos EUA, enquanto novos mercados na Ásia e na Oceania ganham força. Se nas décadas anteriores a preocupação de Washington se concentrava na Colômbia e no México, um estudo do Crisis Group publicado nesta terça-feira aponta uma reconfiguração do mapa regional, com a expansão de rotas para países antes ignorados pelo narcotráfico, mas que hoje são peças-chave do esquema.
Segundo o relatório, a política linha dura defendida pela Casa Branca tem produzido, nos últimos anos, mais violência na região e maior lucratividade para os cartéis, que repassam suas perdas aos consumidores e ampliam seus mercados mundo afora. Embora a caça aos chefões do narcotráfico tenha se notabilizado a partir dos anos 1980, tais operações não têm mais o mesmo impacto na cadeia como um todo, hoje muito mais sofisticada e menos verticalizada. Agora, facções transnacionais terceirizam as etapas a gangues menores, que veem na desigualdade socioeconômica da região uma janela de oportunidade para recrutar cada vez mais membros.
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— Estamos profundamente preocupados com a retórica beligerante de Washington, principalmente porque as evidências apontam que essas medidas duras de repressão, especialmente prisões e extradições de líderes, criam vácuos dentro das organizações criminosas, que, após a disputa pelo poder, acabam se dividindo — analisa ao GLOBO Elizabeth Dickinson, analista sênior do Crisis Group e uma das autoras do estudo. — Hoje, como a cadeia de suprimentos do tráfico de drogas é muito fragmentada, as intervenções do Estado não afetam a capacidade de a droga transitar de um ponto a outro.
Novas rotas
A expansão das rotas de produção e distribuição no continente aumenta o desafio de combater os cartéis, que adaptaram o negócio para contornar as autoridades, diz o estudo — que entrevistou mais de 200 pessoas em cinco países da região, incluindo agentes de segurança e ex-membros de grupos criminosos.
Além da produção de cocaína, maconha e heroína, os grupos diversificaram suas atividades comercializando drogas sintéticas, como metanfetamina e fentanil, e adotando práticas como extorsão e sequestros. "Em vez de sindicatos hierárquicos que poderiam ser desmantelados quando seus líderes fossem identificados, o comércio funciona cada vez mais por meio de redes de fornecedores que subcontratam cada etapa da rota com operadores de nível inferior", aponta o documento.
No novo mapa regional, a maior parte da cocaína segue sendo cultivada na Colômbia, com presença também no Peru e na Bolívia e, em menor escala, na Guatemala, em Honduras e no sul do México. Os caminhos, no entanto, mudaram, explica o Crisis Group. Hoje, a principal rota para os EUA e a Europa passa pelo Pacífico, tornando países antes intocados pelo tráfico, como Costa Rica e Equador, em áreas de trânsito estratégicas.
O relatório revelou a progressão no valor do quilo da pasta-base de coca, usada na produção de cocaína, durante o tráfico. Segundo o Crisis Group, o material sai da Colômbia custando US$ 550, subindo para US$ 800 quando chega nas cidades fronteiriças do Equador e US$ 1 mil no porto equatoriano de Guayaquil, principal ponto de saída de drogas da América Latina para a Europa pela via marítima. Em 2021, o preço da cocaína após o refino no Equador era de US$ 2 mil por quilo, mas ao chegar na Europa Ocidental os valores podem alcançar US$ 40 mil.
Alta demanda
As transformações na cadeia acontecem no momento em que a demanda por drogas em mercados estrangeiros atinge níveis recordes, especialmente de cocaína na Europa (cujo consumo aumentou 60% na última década) e de fentanil nos EUA, aponta o relatório. Novos mercados também estão crescendo na Ásia e na Oceania, onde é possível praticar preços mais elevados, segundo o Crisis Group. O cenário levou o cultivo de cocaína na Colômbia a quadruplicar na última década, enquanto a sua produção global dobrou.
O aumento do consumo também é um problema local. Na América Latina, o uso de narcóticos dobrou entre 1990 e 2010. Segundo um levantamento da Organização dos Estados Americanos (OEA) de 2019, o consumo de cocaína aumentou em quase metade dos países latino-americanos, enquanto o de metanfetamina disparou no México, principal produtor da droga no mundo.
Em 2024, a ONU apontou um crescimento no consumo de drogas de modo geral, com 292 milhões de pessoas assumindo ter feito uso de narcóticos no ano anterior.
Ameaça intervencionista
Desde que retornou à Casa Branca em janeiro, Trump ameaçou impor tarifas a países vizinhos que não agissem para conter o narcotráfico, sobretudo de fentanil, e assinou decretos que abrem margem para ações militares diretas de Washington em países latino-americanos.
Uma das medidas mais simbólicas foi a designação de oito grupos da região como terroristas, entre eles os poderosos cartéis mexicanos de Sinaloa e Jalisco Nova Geração, o venezuelano Trem de Aragua e o colombiano Clã do Golfo — rompendo com uma tradição dos EUA, que geralmente aplica o título a grupos que, como o Estado Islâmico (EI), usam a violência como arma política, não para fins lucrativos. Embora as penalidades sejam sobretudo econômicas, no passado tal rótulo foi um primeiro passo para justificar operações no Afeganistão e na Síria.
Em janeiro, Trump deixou em aberto se a classificação como dos cartéis mexicanos como terroristas implicaria uma invasão ao território mexicano, enquanto aliados republicanos vêm defendendo intervenções militares. Recentemente, o bilionário Elon Musk, à frente do Departamento de Eficiência Governamental (Doge, em inglês), disse que os grupos estariam "elegíveis a ataques de drones".
Até o momento, no entanto, o combate a narcotraficantes na América Latina tem acontecido em parceria com governos locais, a exemplo da Colômbia e do México, que mantêm acordos com os EUA há décadas. Mesmo no Brasil há casos de colaborações. No mês passado, veio a público que o governo do Rio de Janeiro está articulando com os EUA para que o Comando Vermelho (CV) seja classificado como organização terrorista, em meio às negociações de um acordo de cooperação.
Alternativas
De acordo com o Crisis Group, grande parte das medidas de pulso firme adotadas na América Latina desde que os EUA capitanearam a guerra às drogas no mundo, nos anos 1960, se mostraram ineficazes. No campo retórico, porém, elas angariam apoio de muitos setores populares.
— Os eleitores latino-americanos estão muito preocupados com o crime organizado, então apoiam essas estratégias mais duras — explica Dickinson. — Mas essa repressão vem junto com a falsa narrativa de que isso limitará de alguma forma a sua influência e o nível de violência que exercem na população.
De acordo com o estudo, a "maior aplicação da lei, mais apreensões e uma proibição mais forte tendem a aumentar o preço das drogas e, assim, elevar os lucros dos traficantes". Segundo o Crisis Group, táticas como capturar chefões do tráfico e exterminar plantações tornaram as redes de tráfico de drogas mais fortes e dispersas geograficamente. "Onde antes havia cadeias de suprimentos verticais e cartéis dominantes, agora há uma série de criminosos competindo violentamente entre si ou em conluio lucrativo uns com os outros", explica a organização.
— Não existe uma cura única para o ecossistema criminoso transbordante da América Latina, embora as experiências passadas sejam prova do que não funcionou — afirma Renata Segura, diretora do programa de América Latina e Caribe no Crisis Group e também autora do estudo. — A repressão militar e as prisões de alto nível geram vitórias de curto prazo, mas sempre alimentam novas ondas de violência e levam a reconfigurações das estruturas criminosas.
Para Dickinson, "não há bala de prata" para resolver a questão:
— A alternativa é uma combinação de intervenções que realmente se concentrem na redução da violência, melhor policiamento e, em alguns casos, até mesmo o diálogo com grupos criminosos.

