Seg, 29 de Dezembro

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[Opinião] Luzes virtuais sobre a democracia

Ulysses GadêlhaUlysses Gadêlha - Ed Machado/Folha de Pernambuco

Por Ulysses Gadêlha 

Imagine que todos nós estivéssemos, por um longo tempo, dentro de uma sala escura e que, de súbito, as luzes vão acendendo sobre cada indivíduo. Damo-nos conta, pouco a pouco, da incomunicabilidade, uma característica singular dos nossos dias, a crise de sentido há muito prenunciada e potencializada pela indústria cultural (hoje virtual). 

O que tem acirrado os ânimos da política é uma substância intocável, a Internet, aquilo que joga luz sobre o que guardamos no consciente e no inconsciente, que nos tomou feito um “dilúvio” (para recuperar a metáfora do filósofo francês Pierre Lévy), provocando mudanças sutilmente, de baixo para cima.

E, nesse marasmo de pensamentos, pouco importa se o presidente é de esquerda ou direita, uma vez que o pacto social que os coloca lá no “topo do poder” não está muito claro para a maioria. Por isso, na ignorância da estrutura, todos se digladiam.

O noticiário traz o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, dando explicações e pedindo desculpas por um ato de negligência, que presumo, a maioria não compreende tanto além do fato de ter interferido na eleição americana em 2016. O fato é que essa desatenção permitiu à empresa Cambridge Analytica colher dados de 87 milhões de usuários para pôr em prática uma teoria de psicologia de massas baseada na personalidade de um público indeciso, propenso à persuasão das palavras bem postas. Mas desde quando as redes sociais adquiriram esse poder?

Tenho um palpite, uma sugestão. Estou entre as últimas gerações que se divertiram com brincadeiras de rua, como futebol e esconde-esconde. Mesmo assim, eu mergulhei de cabeça na onda dos jogos digitais, precisamente em 2004. Meus pais resistiram a me deixar longas horas diante da tela do computador, absorto em narrativas violentas ou épicas, que prendiam a minha atenção. O fato é que custava muito menos “dor de cabeça” aos pais deixar a criança jogar no computador, do que tomar conta dela na rua, onde estaria exposta a todos os perigos.

Logo, essa longa exposição à tela do computador trouxe um perigo inaudito: os jogos entraram progressivamente nas nossas mentes, como se nos levassem para dentro do espelho. Depois da televisão, isso certamente foi o embrião do fenômeno que é o vício no smartfone, nas infindas horas que dedicamos a observar a vida alheia e expor, sem filtros, a nossa.

Entre as novidades da rede mundial, estava o fato de que não era mais possível dar adeus completamente àquele amigo da faculdade (um espaço geográfico bem específico). Não há mais barreira entre conversar sobre o jogo do Náutico e Central na sala de aula e ver um post sobre o mesmo assunto, talvez mais verborrágico, simplesmente porque escrevendo – na solidão do nosso quarto, talvez – somos mais eloquentes (ou inconsequentes). Os pensamentos íntimos só ganhavam vida se houvesse uma pergunta: o que você acha do Lula? Hoje em dia, a pergunta “O que você está pensando?”, que abre a primeira página do Facebook, é o gatilho perfeito para aquele Narciso reprimido.

Grosso modo, as redes sociais exacerbaram nossas vaidades, nossa vontade de pertencer, com distinção, à manada. Mas o impacto disso na democracia, na forma como convivemos, é ainda sem tamanho. Descobrir opiniões diferentes, lidar com a alteridade rende exercícios de psicanálise, experimentos antropológicos ininterruptos. E, a partir do momento em que nutrimos um perfil online que é a nossa projeção física no mundo virtual, sofremos (na direção contrária) intervenções psicossociais que redimensionam conceitos como verdade (que virou pós-verdade), opinião pública (que pode ser medida nos comentários das páginas), inteligência coletiva (o que pesquisamos no Google), a lógica de consumo (nossos desejos inconscientes expressos nas curtidas do Facebook).

A Internet é um tecido amorfo onde a aparência travestida de confiabilidade é capaz de subverter a ordem estabelecida. Pouco a pouco, o rito democrático, que é a eleição, perde força para o exercício do embate nas esferas mais improváveis. A representação, no contexto de desgaste das instituições, vai sendo cada vez mais questionada e esse clima de “crepúsculo dos ídolos” (que nada tem de novo), por assim dizer, reposiciona a nossa percepção de institucionalidade, de realidade e de democracia. A Internet reconfigura isso tudo sem chamar a devida atenção para si mesma, porque toda tentativa de conceituação tem soado inócua. Percebemos que algo mudou, mas ainda não achamos a expressão correta para definir.

  Ulysses Gadêlha é repórter do caderno de Política da Folha de Pernambuco 

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