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Direito e Saúde

Cobaias humanas: você seria uma?

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A pergunta incomoda — e deveria. Toda grande descoberta médica, toda terapia que hoje salva vidas, todo medicamento que parece óbvio para nós só existe porque, em algum momento, pessoas reais aceitaram participar de pesquisas. A humanidade só avançou porque houve participantes dispostos a contribuir, e porque esses participantes foram — ou deveriam ter sido — protegidos por regras éticas e jurídicas sólidas. Sem participantes não há ciência, e sem ciência não há futuro.

A discussão sobre a proteção de participantes de pesquisa voltou ao centro do Direito da Saúde com a Lei nº 14.874/2024, que reformula o marco regulatório da pesquisa clínica no Brasil, e com a ADI nº 7686, que questiona dispositivos considerados potencialmente violadores de garantias constitucionais. Embora pareça um debate recente, suas raízes são profundas e atravessam a própria história da bioética, cuja origem contemporânea está ligada justamente à necessidade de frear excessos científicos e de colocar limites éticos claros onde a ciência, sozinha, não consegue se autorregular.

A bioética nasceu para equilibrar inovação e proteção humana, tendo como pilares a autonomia, a beneficência, a não maleficência e a justiça. Esses princípios figuram desde o Relatório Belmont até as diretrizes internacionais  e se refletem em toda a construção normativa brasileira. Quando um participante consente, ele não apenas assina um documento: ele exerce um direito moral e jurídico de decidir sobre o próprio corpo, algo que só é válido quando há informação plena e ausência de coação. Quando falamos de grupos vulneráveis — idosos, pessoas com baixa instrução, pacientes em condição clínica grave — a bioética exige salvaguardas reforçadas, e não flexibilização.

Esses princípios aparecem de forma muito concreta nos julgados brasileiros que marcaram o debate. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região já reconheceu que falhas graves no consentimento informado violam diretamente a autonomia e a dignidade, valores centrais da bioética e da Constituição. O Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou que pesquisas envolvendo idosos exigem proteção aumentada, reafirmando a ideia bioética de que maior vulnerabilidade exige maior cuidado. O Superior Tribunal de Justiça reforçou a responsabilidade objetiva de instituições de saúde diante de riscos que o paciente — ou participante — não pode compreender adequadamente, recuperando o princípio da não maleficência: primum non nocere.

A bioética também se constrói em cima de advertências históricas que o mundo jamais deveria esquecer. O caso Jesse Gelsinger, nos Estados Unidos, mostrou como a omissão de riscos e conflitos de interesse pode destruir vidas, mesmo em ambientes de excelência científica. Já a história de Henrietta Lacks — cujas células HeLa moldaram a medicina moderna, mas foram retiradas sem consentimento de uma mulher negra e pobre em 1951 — expõe um dos maiores dilemas bioéticos: quem se beneficia da ciência e a que custo? A injustiça distributiva, o uso de corpos de populações vulneráveis e a desigualdade no acesso a resultados científicos são questões bioéticas que permanecem atuais, especialmente em países marcados por desigualdade estrutural, como o Brasil.

Sem pesquisas clínicas, não haveria vacinas, tratamentos oncológicos, medicamentos cardiovasculares, avanços em genética, terapias para doenças raras. Pesquisas salvam vidas — mas salvam vidas porque há pessoas dispostas a participar delas. E justamente por isso essas pessoas merecem proteção máxima. Não existe boa ciência sem bons participantes, e não existe participação ética sem segurança e respeito.

É nesse contexto que a ADI nº 7686 se torna relevante. Ela sustenta que a Lei 14.874/2024 pode fragilizar o consentimento livre e esclarecido, reduzir proteções a grupos vulneráveis e enfraquecer a atuação dos Comitês de Ética em Pesquisa — instituições concebidas exatamente para materializar, na prática, os princípios bioéticos de proteção e justiça. O STF, ao julgá-la, terá de avaliar se a legislação atual se harmoniza com a tradição brasileira de forte proteção ética ou se demandará ajustes para que o país mantenha padrões de segurança e respeito ao participante reconhecidos internacionalmente.

Esse debate estará no centro do V Fórum de Bioética e Biodireito, que ocorrerá no Real Hospital Português no dia 29 de novembro, reunindo pesquisadores, juristas e profissionais de saúde para discutir consentimento, vulnerabilidade, limites éticos, avanços das pesquisas , uso da inteligência artificial e as repercussões jurídicas da ADI. Em um momento decisivo para o país, a história e os tribunais nos lembram que a bioética não é um obstáculo, mas a garantia de que o avanço científico ocorrerá de forma humana, justa e responsável.

No fim, o verdadeiro progresso científico não se mede apenas pelos resultados publicados, mas pela forma como tratamos aqueles que tornam a pesquisa possível. Quando a proteção do participante é respeitada, a ciência não anda mais devagar — ela anda melhor.

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