Dom, 14 de Dezembro

Logo Folha de Pernambuco
Direito e Saúde

Cura à venda

Foto: Freepik

Quando o marketing vira crime, o problema não é a novidade, é a promessa. No campo da saúde, as chamadas terapias milagrosas prosperam menos pela ciência e mais pela estética da certeza: um depoimento emocionante, um “antes e depois”, uma história de superação, um suposto “médico internacional”, um influencer com linguagem de autoridade e, por trás de tudo, um funil de venda bem estruturado. O resultado já é conhecido e reiterado: pacientes trocam cuidado baseado em evidência por esperança embalada; famílias se endividam; tratamentos eficazes são retardados ou abandonados; e o Judiciário recebe o impacto tardio, quando o dano já está instalado, a confiança foi rompida e a urgência foi artificialmente fabricada.

O salto do marketing para o ilícito ocorre quando a comunicação deixa de informar e passa a induzir. Promessa de cura, garantia de resultado, exploração da vulnerabilidade do doente, ocultação de riscos, afirmações falsas ou imprecisas sobre registro sanitário, recomendação padronizada para “todo mundo” e a venda disfarçada de conteúdo “educativo” são sinais claros dessa transição. Em saúde, isso é especialmente grave porque o consumidor é, via de regra, hipervulnerável: está com medo, dor, pressa, luto antecipado e pouca margem para “testar e ver”. A publicidade, nesse contexto, não disputa apenas atenção; ela disputa decisões vitais, interferindo diretamente no processo de escolha terapêutica.

Sob a perspectiva da bioética, o problema se aprofunda. A autonomia do paciente, pilar central do cuidado em saúde, não se resume à liberdade formal de escolher, mas exige informação adequada, compreensível e honesta. Não há decisão verdadeiramente autônoma quando a escolha é moldada por desinformação, promessas irreais ou omissão deliberada de riscos. Ao manipular expectativas e explorar emoções, o marketing terapêutico distorce o consentimento, esvazia o poder de decisão do paciente e transforma uma decisão que deveria ser esclarecida e compartilhada em mero ato de consumo. A promessa de cura não amplia a autonomia; ela a captura.

Há um padrão que se repete com impressionante constância. Escolhem-se dores socialmente sensíveis — câncer, transtorno do espectro autista, infertilidade, dor crônica, emagrecimento, estética, rejuvenescimento, “desintoxicação”. Constrói-se uma narrativa de ruptura, segundo a qual a medicina tradicional ignora ou esconde a solução e a indústria não lucra com a cura. Veste-se a autoridade com jaleco, estetoscópio, termos técnicos e “artigos” de procedência duvidosa. Apresenta-se a prova anedótica, baseada em relatos pessoais e imagens de antes e depois. Cria-se urgência e escassez, com discursos de “últimas vagas”, “só hoje” ou “protocolo secreto”. Por fim, monetiza-se: cursos, mentorias, prescrições indiretas, e-commerce, consultas premium, links afiliados. Esse ecossistema produz dois danos cumulativos: o dano clínico, com atraso terapêutico, iatrogenia, interações medicamentosas e eventos adversos; e o dano informacional, que mina a confiança na medicina baseada em evidências e substitui o diálogo clínico por narrativas de convencimento.

No cotidiano dos serviços de saúde, os efeitos são concretos. Aparecem como abandono de tratamento, automedicação, uso de substâncias sem registro, repetição de exames sem indicação e adesão a “protocolos” sem qualquer lastro científico. No SUS e na saúde suplementar, isso se traduz em pressão por procedimentos fora das diretrizes, exigência de terapias sem comprovação e crescente judicialização de tratamentos experimentais travestidos de indispensáveis. As pessoas acreditam, querem acreditar, e passam a exigir que o sistema público e os planos de saúde forneçam aquilo que lhes foi prometido no marketing, ainda que inexista evidência, indicação clínica, segurança comprovada ou autorização sanitária.

A judicialização que emerge desse cenário não decorre apenas do direito fundamental à saúde. Ela nasce também da confusão deliberada entre o que é possível e o que é devido. Possível é aquilo que existe como produto, promessa ou discurso; devido é aquilo que passou pelo crivo científico, regulatório, ético e bioético. Quando o marketing promete o que o sistema de saúde, com razão técnica, não entrega, o Judiciário é chamado a arbitrar uma disputa que deveria ter sido contida antes, na regulação da publicidade e na proteção do processo decisório do paciente.

Casos emblemáticos revelam como a cura se apresenta como atalho jurídico. A chamada pílula do câncer levou o Supremo Tribunal Federal a declarar inconstitucional a lei que autorizava seu uso sem o devido caminho regulatório, evidenciando o risco coletivo de liberar tratamento sem estudos adequados. Durante a pandemia, a propaganda de tratamentos precoces motivou decisões judiciais que proibiram a divulgação institucional e impuseram medidas de esclarecimento, inclusive envolvendo influenciadores, diante do potencial de indução ao uso de medicamentos sem eficácia comprovada. A comercialização de dióxido de cloro e substâncias semelhantes, vendidas como suposta cura para doenças graves, inclusive câncer e autismo, ensejou atuação repressiva do poder público para conter a circulação de anúncios e produtos perigosos. Esses episódios demonstram que o dano não se limita ao indivíduo enganado, mas alcança a coletividade e a própria saúde pública.

Nesse contexto, as normas de publicidade médica assumem papel central. A Resolução do Conselho Federal de Medicina sobre publicidade reconhece a presença dos profissionais nas redes sociais e a busca social por informação, mas procura separar conteúdo educativo legítimo de captação predatória e promessa indevida. O ponto crítico permanece na zona cinzenta, onde a informação se converte em venda e a orientação se aproxima perigosamente da prescrição indireta. Quando a fiscalização profissional não é suficiente para conter a viralização dessas práticas, o problema se desloca para o Ministério Público, a vigilância sanitária, os órgãos de defesa do consumidor e o Judiciário.

É justamente nesse cenário que ganha relevo o debate legislativo materializado no Projeto de Lei nº 5.990/2025, em tramitação na Câmara dos Deputados, que pretende limitar a atuação de influenciadores digitais em temas sensíveis, como medicamentos, terapias e procedimentos médicos, exigindo qualificação técnica ou impondo restrições à divulgação. A proposta parte do reconhecimento da profunda assimetria informacional existente nas redes sociais: um criador de conteúdo pode alcançar milhões de pessoas e influenciar decisões de saúde com alto poder persuasivo, sem assumir deveres éticos proporcionais aos efeitos de sua fala. A lógica das plataformas, que premia emoção, certeza e urgência, intensifica o risco bioético ao favorecer discursos que simplificam decisões complexas em slogans e promessas.

À luz do Código de Defesa do Consumidor, a promessa terapêutica infundada caracteriza publicidade enganosa e abusiva, violando o dever de informação e a boa-fé objetiva. Quando difundida em larga escala, essa prática ultrapassa o dano individual e pode configurar dano moral coletivo, por atingir a confiança social, a saúde pública e o direito difuso à informação adequada. A tutela coletiva, nesse ponto, dialoga diretamente com a bioética, pois ambas partem da premissa de que decidir exige compreender, e compreender exige verdade.

No fundo, o que está em disputa é a própria noção de autonomia em saúde. Escolher não é apenas optar entre alternativas apresentadas, mas decidir com base em informação qualificada, transparente e honesta. Quando a cura vira mercadoria e a promessa substitui a evidência, a autonomia é esvaziada e a decisão deixa de ser livre. Em saúde, transformar esperança em produto não é inovação — é produção de risco. 

Veja também

Newsletter