Dia Mundial da Saúde Mental: direito e cuidado
O Dia Mundial da Saúde Mental, celebrado em 10 de outubro, foi criado para lembrar que saúde não é apenas ausência de doença, mas um estado de bem-estar físico, emocional e social — um direito de todos, garantido pela Constituição Federal e pela Lei nº 10.216/2001, que assegura tratamento digno, comunitário e livre de discriminação às pessoas com transtornos mentais.
Contudo, o cenário contemporâneo mostra que cuidar da mente tornou-se um desafio global. Segundo a Organização Mundial da Saúde, mais de 970 milhões de pessoas convivem atualmente com algum transtorno mental, e o Brasil figura entre os países com os índices mais altos de depressão e ansiedade no mundo. Estima-se que 11 milhões de brasileiros sofram de depressão e quase 19 milhões apresentem sintomas de ansiedade — números que refletem o aumento de afastamentos do trabalho, internações e sofrimento silencioso.
As causas desse crescimento são multifatoriais. A pandemia de COVID-19 ampliou o isolamento, o medo e o luto; o uso excessivo de telas e redes sociais intensificou a comparação e a solidão; a instabilidade econômica e o estresse laboral aumentaram a pressão diária. Soma-se a isso a desigualdade social, a sobrecarga das mulheres, a falta de tempo para o descanso e a perda de vínculos comunitários. Todos esses fatores criam terreno fértil para o adoecimento psíquico.
Mas é importante destacar que nem todo sofrimento é uma doença mental. A tristeza diante de uma perda, a angústia em momentos de transição, o cansaço após um período de estresse ou a frustração por algo que não deu certo são sentimentos humanos e, muitas vezes, passageiros. O risco está em transformar emoções normais em diagnósticos permanentes, medicalizando a vida e reduzindo a complexidade dos afetos a uma prescrição. O diagnóstico de um transtorno mental deve ser cuidadoso, individualizado e contextualizado - levando em conta fatores biológicos, sociais e culturais.
É preciso diferenciar o sofrimento psíquico, que é expressão legítima da vida emocional, do transtorno mental, que demanda acompanhamento especializado. O perigo da confusão é duplo: de um lado, negligenciam-se doenças reais; de outro, patologiza-se o viver. O diagnóstico deve ser fruto de escuta, empatia e observação clínica — não de rótulos apressados ou modismos diagnósticos.
O tratamento adequado envolve múltiplas dimensões: acompanhamento psicológico e psiquiátrico, quando indicado; apoio familiar e social; incentivo à atividade física e à alimentação equilibrada; práticas de relaxamento e autoconhecimento; e, sobretudo, escuta sem julgamento. A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), no âmbito do SUS, é o principal instrumento público para garantir esse cuidado integral. Ela abrange os CAPS, os serviços residenciais terapêuticos, as unidades de acolhimento e os ambulatórios especializados — todos voltados a um modelo que prioriza o convívio comunitário e o tratamento humanizado.
Entretanto, o acesso ainda é desigual. Em várias regiões, há falta de profissionais, filas longas e poucas vagas. No setor privado, muitos planos de saúde limitam o número de sessões de psicoterapia ou negam cobertura de internações psiquiátricas, contrariando normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar. É nesse contexto que cresce a judicialização da saúde mental, fenômeno que se intensificou nos últimos anos.
Levantamentos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus) mostram que as ações judiciais envolvendo saúde mental representam uma parcela crescente dos processos de saúde em todo o país. Entre os pedidos mais comuns estão a cobertura de sessões de psicoterapia e terapias multidisciplinares, o fornecimento de medicamentos psiquiátricos de alto custo, internações involuntárias, tratamentos para dependência química, benefícios por incapacidade e o atendimento especializado para crianças e adolescentes com autismo e outros transtornos do neurodesenvolvimento.
De acordo com relatórios do CNJ, houve aumento expressivo de decisões liminares para garantir o início imediato de tratamentos psicológicos e psiquiátricos, diante da urgência do quadro clínico e da falta de alternativas no SUS. Em muitos casos, o Judiciário atua para assegurar o mínimo existencial — o núcleo essencial do direito à saúde — que o Estado ou os planos de saúde não estão conseguindo garantir de forma tempestiva.
Essas ações refletem uma realidade preocupante: o sistema público ainda não dá conta da crescente demanda por atenção à saúde mental, e a rede privada, muitas vezes, atua de forma restritiva, impondo barreiras que ferem o princípio da integralidade do cuidado. A judicialização, embora legítima como instrumento de acesso à justiça, evidencia o fracasso da política pública quando o cidadão precisa recorrer ao juiz para ter o direito básico de ser ouvido e tratado.
Dados recentes divulgados pela Forbes Saúde reforçam a gravidade do problema. De acordo com a revista, 25% dos profissionais brasileiros relatam sentir tristeza diariamente, e 46% afirmam viver sob estresse constante. O Brasil está entre os países com maior índice de sofrimento emocional no ambiente de trabalho. Em 2024, foram registradas 472 mil licenças médicas por transtornos mentais, um número recorde que representa aumento de 67% em relação ao ano anterior. As mulheres são as mais afetadas, correspondendo a 63,8% das licenças.
Além da assistência, o direito ao trabalho digno integra essa discussão. Os afastamentos por transtornos mentais cresceram mais de 130% entre 2022 e 2024, segundo dados da Previdência Social. O ambiente de trabalho, frequentemente, é fator de adoecimento - e as empresas devem promover um ambiente psicologicamente seguro, combater o assédio moral e respeitar os limites da jornada. A negligência empresarial, nesse contexto, pode gerar responsabilidade civil.
A sociedade, por sua vez, precisa mudar sua forma de lidar com o tema. O estigma ainda é uma barreira invisível que impede muitas pessoas de buscar ajuda. Quem sofre com ansiedade ou depressão frequentemente é rotulado como “fraco” ou “incapaz”. Esse julgamento moral agrava o sofrimento e afasta o indivíduo do tratamento. É urgente falar sobre o tema com naturalidade, reconhecer que o sofrimento emocional é humano e que pedir ajuda é um ato de coragem.
O Dia Mundial da Saúde Mental é, portanto, mais do que uma data simbólica: é um convite à reflexão sobre o modelo de cuidado, sobre o papel do Estado e sobre a responsabilidade de todos nós em construir uma sociedade que acolha o sofrimento com empatia, e não com exclusão.
Saúde mental é um direito humano fundamental, que deve ser garantido com políticas públicas adequadas, acesso igualitário e respeito à dignidade. Cuidar da mente é reconhecer nossos limites, aceitar que sentimentos são parte da vida e buscar apoio quando o peso se torna maior do que podemos carregar. E o papel do Direito é justamente esse: assegurar que ninguém precise enfrentar sozinho o que deveria ser cuidado em conjunto. Porque, no fim, defender a saúde mental é defender a própria humanidade.



