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Direito e Saúde

Esperança e desafios das novas terapias na medicina

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Nos últimos meses, a ciência brasileira tem nos brindado com notícias que reacendem a esperança de pacientes e famílias. Um exemplo emocionante veio da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ: um cachorro tetraplégico voltou a andar após tratamento experimental envolvendo regeneração tecidual e estimulação neural. O estudo utiliza a polilaminina, proteína derivada de placenta humana capaz de estimular a regeneração de axônios na medula espinhal. Seis cães participaram do protocolo, e quatro apresentaram melhora significativa, recuperando movimentos das patas traseiras. Casos humanos iniciais, ainda em pequena escala, indicaram ganho de sensibilidade e até de movimentação parcial em pacientes com lesões recentes e crônicas. Embora promissor, o tratamento ainda está em fase experimental, carecendo de estudos controlados, definição de dose ideal e autorização formal da Anvisa para ensaios clínicos mais amplos. Ainda assim, o avanço é simbólico: ele sinaliza que lesões medulares, historicamente irreversíveis, podem deixar de ser sentenças definitivas, trazendo à tona um sentimento de que o impossível começa a se tornar possível.

E a lista de inovações que trazem esperança não para por aí. Além das pesquisas com polilaminina, estudos internacionais têm mostrado resultados encorajadores com terapia gênica para doenças raras, como a atrofia muscular espinhal, e com edição genética CRISPR, já usada para tratar casos de anemia falciforme e beta-talassemia, com pacientes alcançando remissão completa. No Brasil, pesquisadores desenvolvem vacinas terapêuticas para melanoma e câncer de colo de útero, além de avanços em medicina regenerativa com células-tronco para tratar insuficiência cardíaca e lesões articulares graves. Há também estudos em neurociência sobre estimulação elétrica epidural, capazes de devolver movimentos voluntários a pessoas com lesões medulares completas, e ensaios de órgãos bioimpressos em 3D, que em breve podem reduzir filas de transplante. Essas descobertas mostram que vivemos um momento de virada na história da medicina, no qual ciência, tecnologia e inovação se encontram para redesenhar o conceito de cura.

Essa esperança se soma ao que o mundo acompanha com expectativa: o avanço das chamadas terapias avançadas, como o CAR-T, técnica que reprograma células de defesa do próprio paciente para atacar tumores hematológicos refratários. No Brasil, esse tratamento já possui autorização de ensaios clínicos pela Anvisa, e o estudo CARTHEDRALL, desenvolvido pelo Hemocentro de Ribeirão Preto e Instituto Butantan, avança para fases mais amplas após resultados iniciais positivos e comprovação de segurança. Ainda não se trata de terapia disponível em larga escala no SUS ou nos planos de saúde, mas algumas decisões judiciais já determinaram o custeio do tratamento em casos específicos, especialmente para pacientes sem alternativas terapêuticas convencionais, demonstrando que a medicina e o direito caminham lado a lado para viabilizar o acesso.

Esse fenômeno é reflexo de uma característica marcante do nosso tempo: a aceleração das descobertas científicas. Em poucas décadas, passamos de compreender o DNA humano no Projeto Genoma para desenvolver terapias personalizadas e imunoterapias capazes de reprogramar células. A inteligência artificial e o big data revolucionaram a pesquisa clínica, permitindo que moléculas que antes levavam dez anos para serem descobertas hoje sejam identificadas e testadas em questão de meses. A pandemia de COVID-19 foi um marco nesse sentido: demonstrou que é possível desenvolver vacinas seguras e eficazes em tempo recorde quando ciência, indústria e regulação trabalham de forma coordenada. Essa experiência abriu caminho para procedimentos de aprovação acelerada, sobretudo em doenças raras ou de alta letalidade, garantindo acesso mais rápido sem abrir mão da segurança.

Mas a velocidade da ciência não dispensa o rigor. Transformar uma descoberta de laboratório em um tratamento disponível para a população exige seguir um caminho regulatório bem definido, que tradicionalmente envolve:

1.    Fase pré-clínica: realizada em modelos animais, para avaliar segurança, dose e mecanismo de ação.
2.    Fase clínica I: testes em pequenos grupos de voluntários saudáveis para verificar segurança inicial.
3.    Fase clínica II: avaliação de eficácia em grupos maiores de pacientes e monitoramento de efeitos adversos.
4.    Fase clínica III: estudos multicêntricos, com centenas ou milhares de pacientes, comparando o novo tratamento com as terapias padrão, consolidando dados de eficácia e segurança.

Somente após o cumprimento dessas etapas é possível submeter os resultados à Anvisa para análise e eventual registro. A partir daí, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias – CONITEC avalia se o tratamento será incorporado ao SUS, considerando custo-efetividade e impacto orçamentário, enquanto a Agência Nacional de Saúde – ANS atualiza o rol de procedimentos obrigatórios para a saúde suplementar. Ainda assim, muitas vezes é o Judiciário quem garante o acesso individual, especialmente quando o tratamento é essencial e tem registro sanitário, mas ainda não foi formalmente incorporado às políticas públicas.

Esse papel do Judiciário tem sido fundamental para acelerar a chegada de terapias inovadoras aos pacientes. Foi assim com os antivirais para hepatite C, com o trastuzumabe para câncer de mama HER2+ e com o nusinersena para atrofia medular espinhal, todos inicialmente concedidos por ordem judicial e posteriormente incorporados ao SUS. No caso do CAR-T, decisões já determinam seu custeio em situações emergenciais, amparadas pelo direito fundamental à saúde previsto no art. 196 da Constituição.

Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 1234, estabeleceu diretrizes claras para pedidos de medicamentos e terapias não incorporados, exigindo a demonstração de imprescindibilidade do tratamento, a inexistência de substituto no SUS, o registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA (ou justificativa para eventual demora irrazoável) e a apresentação de evidência científica robusta de eficácia e segurança. Essa decisão trouxe previsibilidade, reduzindo decisões casuísticas e reforçando o diálogo entre Judiciário, Executivo e órgãos técnicos, o que confere maior segurança jurídica a pacientes e gestores.

Nesse contexto, a discussão sobre custo e sustentabilidade se torna inevitável. A CAR-T, por exemplo, na forma importada, custa cerca de R$ 2,5 milhões por paciente, valor que pode cair para algo em torno de R$ 200 mil com a produção nacional em desenvolvimento. O Ministério da Saúde já destinou R$ 200 milhões para pesquisas envolvendo terapias celulares, buscando viabilizar sua futura incorporação ao SUS. Apesar desses esforços, cerca de 85% dos pacientes que tiveram acesso ao CAR-T o fizeram por meio de decisão judicial. E esse dado dialoga com a realidade mais ampla: há atualmente mais de 800 mil processos de saúde tramitando no Brasil, com tempo médio de julgamento superior a um ano, o que afeta diretamente quem precisa de decisão urgente para garantir a própria sobrevivência.

Esse quadro reforça a urgência de políticas públicas que tornem o acesso mais equitativo e menos dependente da via judicial. É necessário conciliar a sustentabilidade financeira do SUS e dos planos de saúde com o direito fundamental à saúde, buscando modelos de financiamento inovadores, como negociações baseadas em resultados clínicos, parcerias público-privadas e incentivos à produção nacional. Além disso, é preciso garantir que o acesso não seja privilégio de quem pode litigar, mas um direito efetivo de todos os pacientes que preencham os critérios clínicos.
Por fim, é preciso lembrar que cada inovação carrega esperança, mas também exige prudência. A bioética oferece os princípios que devem nortear esse caminho: beneficência, buscando o melhor para o paciente; não maleficência, evitando riscos desnecessários; autonomia, garantindo informação e escolha consciente; e justiça, assegurando uma distribuição equitativa de recursos. As novas descobertas nos desafiam a transformar ciência em política pública, para que a esperança seja um direito de todos, e não um privilégio de poucos.
No encontro entre ciência, regulação e Justiça, constrói-se o futuro da medicina – um futuro que precisa ser rápido o bastante para salvar vidas, mas ético o suficiente para não atropelar evidências. Progresso e prudência devem caminhar juntos, guiados pelos princípios da bioética e pelo compromisso com a dignidade humana. 
 

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