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Folha Gastronômica

Pirão a Glória do Brasil

João Lin/Ilustração/Folha de Pernambuco

O Guia Gastronômico Internacional Taste Atlas, todos os anos, escolhe os melhores pratos tradicionais, ingredientes locais e restaurantes. E considerou o pirão, receita tradicional da culinária brasileira, um dos 10 melhores mingaus do mundo. Em primeiro lugar ficou o Bubur ayam (do Sudeste Asiático), seguido pelo Arroz caldo (Filipinas), Elarji (Georgia), Taci si înghite (Romenia), Banosh (Ucrania), Polenta com queijo (Romenia), Shrimp and grits (EUA), Pirão (Brasil), Polenta taragna (Italia), e da Bissara (Norte da África). Da maravilha desse pirão já sabia Gilberto Freyre. Em artigo (Pirão a glória do Brasil) para o Diário de Pernambuco, nos anos 1920, escreveu: “Nada pode ser mais brasileiro que o pirão”. E reclamou: “Como é que até hoje ninguém pintou um quadro, escreveu um poema, compôs uma sinfonia ou mesmo ergueu uma estátua em homenagem ao pirão”. É que, para ele, o pirão é um símbolo cultural e identitário do Brasil, elevando-o ao mesmo nível de outras formas de arte. 

Lembrando que o pirão é feito da farinha de mandioca, já muito apreciada por nossos índios. São muitos os registros. “Na terra não há pão, supre-se este defeito com a farinha de pau que é o pó de uma raiz sativa, a que chamam de mandioca”, dizia o médico português Francisco da Fonseca Henriques Mirandela, em Âncora Medicinal para Conservar a Vida com Saúde, em 1721. Quase a mesma descrição que fez Pero de Magalhães de Gândavo: “O que lá se come em lugar de pão é farinha de pau. Esta se faz da raiz de uma planta chamada mandioca”. A essa farinha de mandioca, feita pelos índios, o colonizador chamava de pau – para diferenciar da farinha do reino, feita de trigo e vinda do além-mar. Havia uma farinha-de-pau mole (uí-pon ou uí-puba, depois chamada farinha-puba), umedecida por infusão; e outra seca (uí-atã), bem mais apreciada. Acompanhava quase todos os alimentos – carnes, peixes e até frutas. Curioso é que, com o tempo, os brasileiros continuaram a chamá-la de mandioca - honrando, no nome, sua origem tupi. Tendo essa mandioca, ao lado, uma expressão latina - farinha (farina), em lugar do seu equivalente indígena (uí). Farinha de mandioca virou depois sustento básico dos escravos embarcados. E com ela também se abasteciam portugueses, nas viagens de volta à terra mãe. 

As farinhas eram feitas em barracões espaçosos e arejados, de chão batido, cobertos de palha, pelos índios considerados sagrados – a casa-de-farinha. Toda a tribo participava do trabalho. O processo de fabricação se mantém até hoje, basicamente, como sempre foi. Com poucas atualizações. Espinhos, dentes de animais e cascas de ostras, usados pelos índios, foram sendo substituídos pelos dentes de ferro do “cavador” - que rala a mandioca, depois de descascada e lavada. Mãos indígenas espremiam essa mandioca ralada com um cilindro de palha (tipiti), separando o líquido da massa; o cilindro indígena foi, depois, substituído por prensas mecânicas. Enquanto o líquido é colocado em alguidar para decantar – originando (no fundo) uma goma muito fina usada nas tapiocas; e outra mais grossa e escura (na superfície), usada em beijus e tapiocas escuras (conhecidas como saboronga ou sabonga). A massa que sai da prensa vai para a secagem. Os índios dependiam das incertezas do sol; enquanto, hoje, é usado o forno (por 3 a 4 horas), mexendo sempre até chegar ao ponto de farinha. Tudo fazendo com que essa farinha se mantenha a mesma, no gosto, ao longo dos séculos. A diferença fica por conta do aspecto - que a indígena tinha grumos; enquanto as de hoje, com essas modernizações, acabaram mais homogêneas. 

Da farinha os índios faziam pirão (piro, papa grossa), entornando sobre ela um caldo quente. É o que chamamos hoje de “pirão escaldado”. Com a chegada do colonizador, nasceu aqui o “pirão mexido” – mesma receita usada por eles no além-mar, para açordas e papas, com preparação mais sofisticada que o anterior. A farinha vai sendo pulverizada, aos poucos, em um caldo fervente, mexendo bem, até que chegue na consistência própria. Da farinha os escravos também faziam “farofa”. A palavra tem origem africana. Em Angola, é conhecida como falofa ou farofia. Em Portugal, essa farofia não tem nada a ver com farofa; sendo apenas uma deliciosa sobremesa de ovos. Viva, então, o nosso pirão – a glória do Brasil.
 

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