Lula: rondó do último populista latino-americano
“Não existe pecado ao Sul do Equador”, Chico Buarque
Lula parou no século XX. Não compreendeu as mudanças que tornaram diferente e específico o século XXI. Não foram só as mídias sociais. Nem apenas a vontade de empreender. É a veracidade das reformas para que o Estado faça suas entregas. É a necessidade de avaliar políticas públicas para ajudar o equilíbrio fiscal. É a coragem de cortar isenções fiscais quando ainda seria possível. É exigência de ser contemporâneo do futuro. Pensando estrategicamente. E não priorizando a próxima eleição.
O primeiro passo foi em falso. Quem ganhou a eleição não foi o PT. Foi um conjunto de forças de centro. Onde estavam Simone Tebet e Marina Silva. Que foram ocultadas na paisagem descolorida do governo. A primazia de postos relevantes coube exclusivamente a petistas. No caso do bolsa família, uma gestão sonâmbula. No caso da Previdência, a cumplicidade com o desmazelo.
Coroando tudo isso, o populismo tropical avançou. Estendeu tapete vermelho para Nicolas Maduro. Um ditador com certidão passada no cartório da fraude. Depois, o encontro esguio com Vladimir Putin. O desvio de Volodymyr Zelensky. E mais o desencontro geopolítico com as nações tradicionalmente aliadas do Brasil. Gerando clima de desconfiança com as posições brasileiras. Tanto que nosso país deixou de ser procurado para colaborar na mediação de conflitos. Mesmo com a bagagem reconhecida e profissional do Itamaraty.
Populismo é doença que acentua três características: ideologia acima de valores democráticos; clientelismo mantendo dependência da pobreza; e nacionalismo destacando mescla de visão Hobbesiana e sentimento de Narciso. No Brasil, tivemos dois populistas de reconhecida estirpe: Getúlio Vargas, fundador do Brasil moderno. E Luiz Inácio da Silva, tradutor da desigualdade social.
Observa-se, portanto, no populismo uma dimensão pessoal. Mas existe também uma dimensão institucional. Refletida no aparelho do Estado. Envolvendo três aspectos: uso ineficiente da estrutura estatal (exemplo dos Correios); utilização improdutiva de recursos do Estado pela não avaliação de desempenho das políticas públicas (exemplo de Educação e Saúde); e manutenção de isenções fiscais além do tempo suficiente para que as empresas se tornem competitivas (mais de R$ 300 bilhões anuais).
Por cima desses aspectos clássicos, há a necessidade temporal de atualizar a funcionalidade do Estado. Conforme as conveniências do tempo, a urgência das demandas sociais e a magia da tecnologia. Exemplo: a privatização da Telebras. Possibilitando que o país possua, hoje, uma das mais avançadas redes de telecomunicação do planeta. Há também dois exemplos europeus: na França, a reforma na educação, após a crise de 1968. Restaurando a qualidade do ensino da Sorbonne. E, na Inglaterra, a reforma no setor industrial, inclusive de minérios. Os ingleses, nos anos 70, viviam processo de decadência econômica. E, depois da reestruturação na indústria, o Reino Unido elevou produtividade, qualidade de bens e competitividade empresarial.
O populismo apresenta uma pintura em duas cores: no contexto político, o nacionalismo. E no perfil pessoal, o apuro carismático. O nacionalismo é um movimento de mobilização de massa. Que visa produzir ondas de agregação coletiva. Nas ruas e nas redes. Foi vivido no Egito por Gama Abdel Nasser (1918-1970). E recentemente por Donald Trump. Com o lema Make America Great Again. E um tarifaço que opôs os Estados Unidos contra dezenas de países. Como se vê, não é nada novo. Também não é artigo exclusivo da América Latina. O nacionalismo começa retórico. E termina sem eco. Mudo. Isolado.
Por sua vez, o carisma é o acabamento psicológico do populismo. Recortado em franjas Freudianas. O populista tem presença e verbo. É com esses recursos que ele pretende produzir emoção. Fazer com que a massa, irracional e oferecida, dispense o raciocínio. Incorporando-se ao estilo de manada. Fala e emociona. Para inibir a inteligência. Seja puxando os erres e esses como Jânio Quadros. Sob a sombra de cabelos desgrenhados. Seja com o olhar de aço, faiscando gulags, como o czar russo. Carisma, como disse Fernando Pessoa, é o tudo que é nada.
O escritor peruano Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de literatura, fala em espírito da tribo. Para indicar as manobras ideológicas. Espírito da tribo é o lado primário da política. Segundo Karl Popper, espírito tribal é impulso do ser humano primitivo. Seria uma espécie de filho de feitiçaria. A quem caberia patrocinar o culto da personalidade. Desde a opressão inspirada no livro vermelho. Até a modelagem de Estado sindical, paralelo, ao modo de Peron.
Longe dos populistas, Isaiah Berlin, original no seu volver, tinha visão limpa do homem. Não se tratava de utopia. Solta na beleza abstrata do pensar. Mas lucidez concreta e presa à destreza do viver. Com experimentada capacidade humana de se reinventar no embate. Talvez, como disse um amigo, sentindo a pele arrepiada: “O que vale é sempre olhar o mundo como se fosse a primeira vez”.



