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Monet & Clemenceau, a arte da amizade

Claude Monet (1840-1926), pai do Impressionismo, experimentou o feitio e o calor da amizade

Claude Monet (1840-1926), pai do Impressionismo, experimentou o feitio e o calor da amizadeClaude Monet (1840-1926), pai do Impressionismo, experimentou o feitio e o calor da amizade - Claude-Monet-Reprodução

Amizade é obra-prima. Uma das obras-primas da vida. Cada um de nós tem a sua. E algumas são exemplares. Claude Monet (1840-1926), pai do Impressionismo, experimentou o feitio e o calor da amizade. No percurso existencial que foi uma cordilheira.

Escapou do academicismo do século XIX. E desbravou seu próprio caminho. Fascinado com a água e as flores. E, nelas, as cores. Fez uma imersão na paisagem de Giverny. Mergulhou no rio Sena. Construiu um lago. Plantou vitórias-régias. Produziu um bosque. Mandou fazer um barco-ateliê. Pintava enquanto navegava. E navegava enquanto pintava. Um pintor, navegador. E um navegador que se realizava como pintor.

No início da carreira, teve dificuldade de vender seus trabalhos. Investiu esforço durante uma década. E decidiu afastar-se do molde da pintura tradicional. Buscando pintar a beleza exterior. E decifrar o enigma do seu interior. Fixado nas cores. E na originalidade do traço fundante dos impressionistas. A obra seminal do movimento foi Impressão, o nascer do sol. Apresentada em Paris, em 1874. Um crítico, ironicamente, escreveu: “Estou impressionado”. Deu nome à escola.

Monet enviuvou. Formou nova família. Na reconstrução familiar, recebeu apoio do amigo Georges Clemenceau (1841-1929). Ex-primeiro-ministro da França. Monet retomou seu trabalho. Aprofundou a experiência impressionista. Veio a Primeira Guerra Mundial.

Seu filho foi recrutado para servir ao Exército francês. E seu amigo, Clemenceau, tornou-se ministro da Guerra. Ao final do conflito, visitando Monet, carregando o peso das batalhas da guerra e animado com a energia da obra do pintor, afirmou: “O mundo precisa de uma nova visão”. Ele ficou encantado com o espaço ecológico criado por Monet. A moldura fluvial do Sena. A arquitetura botânica dos nenúfares. Formando um cenário notável e estimulante.

Mas, com quase setenta anos, Monet percebe a perda gradual da vista. Viu-se obrigado a substituir a leveza das vitórias-régias por salgueiros-chorões. Enormes, densos, intrincados. Claro significado do sentimento agônico do pintor. Acossado pela cegueira, com a queda da instância que iluminava seu cinzel.            

Mais uma vez, valeu a amizade. Clemenceau, fora da política, sai de Paris. E vai dar suporte ao amigo no seu sofrimento em Giverny. E, aí, inspirada na amizade, a pintura de Monet retoma sua força criativa. Os salgueiros-chorões propiciam o salto abstrato de Monet. Um arco que vai do impressionismo ao voo abstracionista. Prenunciando a guinada contemporânea de outros pintores. Como Jackson Pollock. Do outro lado do Atlântico.

Nessa altura, em 1909, Monet faz uma exposição, em Paris, de quarenta telas. Sucesso absoluto. Uma magnífica visão da obra completa do artista. E de sua evolução como mestre da pintura. Um dos grandes do século XX.  Monet fez a doação do acervo ao povo da França. Ciente do gesto do amigo, antes de deixar o governo, Clemenceau determina a destinação de um museu para acolher as obras. Daí nasceu um dos pontos obrigatórios da arte do século XX: o Museu l’Orangerie.

Olhando a arquitetura da sala principal do museu, em formato oval, desenhada pelo próprio Monet, é possível sentir o aconchego de formas. Como se o formato ovalado incentivasse as pessoas a se aproximarem umas às outras. Reproduzindo, de certo modo, gesto de empatia. Vínculo de amizade que uniu duas expressões do gênio francês.

E, ao sair do l’Orangerie, pude ouvir, no sussurro da brisa que tocava meu rosto, ecos de conversa de amigos. Vinda do tempo. Tempo infindo. Que se prolonga no brilho das estrelas.

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