Com “Pluribus”, da AppleTV+, Vince Gilligan entrega seu trabalho mais inquieto
Trama de ficção científica do criador de “Breaking Bad” questiona a própria ideia de indivíduo
Há algo curioso em "Pluribus". É uma série de ficção científica que age como se não tivesse pressa de provar que é ficção científica. Vince Gilligan retorna à TV depois de um hiato e, em vez de repetir o caminho que o consagrou (“Breaking Bad” e “Better Call Saul”), decide construir um experimento narrativo sobre o que acontece quando a humanidade resolve compartilhar a própria mente.
O resultado é ousado, desigual em alguns momentos, mas absolutamente fiel ao gesto fundamental do criador: confiança na inteligência do espectador e um interesse obstinado pelo comportamento humano em situações-limite.
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Gilligan parte de uma premissa elegante e perigosa. Uma rede neural que conecta consciências e transforma empatia em obrigação. Carol Sturka (Rhea Seehorn), uma escritora infeliz, se torna a única imune a um vírus que transforma a humanidade em uma única consciência coletiva movida pela felicidade absoluta.
Assinatura de Gilligan
O peso que Gilligan coloca sobre os personagens é silencioso. Se em “Breaking Bad” e “Better Call Saul” a tensão nascia de decisões irremediáveis, aqui ela brota de olhares, hesitações, tremores quase imperceptíveis.
A direção escolhe enquadrar corpos como se fossem parte do cenário. Paletas metálicas, ruídos sintéticos e ambientes estéreis criam uma estética que incomoda, tudo feito para reforçar a sensação de que a individualidade está se dissolvendo, quadro a quadro.
E como sempre acontece nos melhores momentos de Gilligan, a série não entrega atalhos. Não se interessa por explicações mastigadas, não repete informações, não recorre a frases prontas. Episódios terminam sem a expectativa do choque barato, porque a tensão real está no acúmulo das coisas.
Referências
Há ecos evidentes de “Arquivo X”, especialmente na combinação entre mistério e paranoia, mas a referência nunca vira muleta. Gilligan está muito mais interessado em discutir livre-arbítrio, limites éticos e a ilusão da felicidade controlada.
O texto encaixa sarcasmo e melancolia sem anunciar nenhum dos dois, como se a própria série estivesse testando o público, avaliando quem aceita ou não a ideia de um mundo sem fronteiras mentais.
O elenco ajuda a sustentar esse desconforto. Rhea Seehorn entrega uma das melhores performances da carreira, movendo-se entre fragilidade e obstinação com uma naturalidade que nenhuma cena verbaliza. Giancarlo Esposito e Toni Collette, em participações precisas, ampliam o impacto moral da narrativa sem roubar o foco. A soma de todas essas escolhas faz de “Pluribus” uma obra que, mesmo quando tropeça em excesso de densidade, emerge com personalidade.
“Pluribus” é uma série sobre solidão e sobre o medo de perdê-la. Ao imaginar um futuro onde ninguém é mais dono dos próprios pensamentos, Gilligan constrói um comentário sutil e feroz sobre a época em que vivemos, marcada por um compartilhamento compulsório de emoções e por uma busca desesperada por pertencimento.
Não é uma série para todos, e parece orgulhosa disso. Mas é, sem dúvida, a produção mais instigante que a AppleTV+ lançou até agora e o trabalho mais maduro de Gilligan desde que ele decidiu abandonar o deserto e encarar a mente humana como seu novo território de risco.
*Fernando Martins é jornalista e grande entusiasta de produções televisivas. Criador do Uma Série de Coisas, escreve semanalmente neste espaço. Instagram: @umaseriedecoisas.
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