“O Monstro de Florença”: quantos monstros cabem em uma mesma história?
Minissérie italiana revive caso real que assombrou a Toscana entre 1968 e 1985
Há casos criminais que parecem nascer para atormentar gerações, e o do “Monstro de Florença” é um deles. A minissérie italiana da Netflix, dirigida por Stefano Sollima e Leonardo Fasoli, parte dessa herança da vida real para reconstruir quase vinte anos de assassinatos que mancharam a imagem bucólica da Toscana com colinas perfeitas, vinhedos e vilarejos fotogênicos. A série entende esse contraste, quanto mais idílico o cenário, mais brutal o eco dos crimes.
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Desenvolvida ao longo de quatro episódios, a produção revisita a cadeia de suspeitos ligados à primeira vítima, Barbara Locci. O recurso de dedicar cada capítulo a um homem diferente (um marido submisso, um amante agressivo, um irmão ressentido) cria um mosaico de masculinidades tóxicas que, somadas, explicam mais sobre a sociedade da época do que sobre o caso.
O caso
A trama parte de um dos casos criminais mais nebulosos da Itália para reconstruir a caçada ao serial killer que aterrorizou o país entre 1968 e 1985. Inspirada em fatos reais, a produção revisita os oito duplos homicídios atribuídos ao assassino (sempre cometidos com a mesma Beretta calibre 22) e acompanha como a investigação policial se tornou um labirinto de falhas, injustiças e pistas contraditórias.
Ao longo dos episódios, suspeitos são presos, inocentados ou descartados, enquanto a verdade permanece sempre um passo adiante, sustentando a sensação de que o verdadeiro criminoso pode ter circulado livremente por décadas, protegido tanto pelo caos das evidências quanto pela fragilidade das instituições que deveriam detê-lo.
O caso real segue sem solução, mas a minissérie mostra por que tantos tinham motivo, oportunidade e um histórico de violência normalizada.
O olhar de Sollima
A escolha estética segue a tradição de Sollima: ambientes sufocados, diálogos curtos, um frio constante mesmo quando o sol está aceso. A montagem, porém, oscila entre sugestiva e dispersa. A ambição de abarcar décadas, investigações paralelas e múltiplas versões do mesmo crime acaba enfraquecendo o impacto do terror íntimo que a série tenta construir.
Ao contrário de produções como a antiga “The Killing”, que transformam a obsessão policial em motor dramático, “O Monstro de Florença” aposta no psicológico, às vezes com força, outras com hesitação.
Atuações
O elenco sustenta a narrativa onde o roteiro vacila. Valentino Mannias é perturbador sem esforço como Salvatore Vinci. O olhar dele parece realmente carregar segredos enraizados na própria terra. Sua interpretação dá vida a um tipo de sociopata caseiro, moldado pela brutalidade cotidiana, e não pelo espetáculo.
Já Marco Bullitta, por outro lado, encarna o marido esgotado e passivo, e boa parte da dualidade moral da minissérie vem de seu personagem. Francesca Olia funciona como contrapeso emocional, lembrando o público de que, antes de virar mito, o “Monstro” destruiu vidas reais.
Temas importantes
A minissérie acerta ao trabalhar a misoginia que permeava as relações, as investigações e até a cobertura midiática da época. Ao revisitar a vida de Barbara Locci e a maneira como seus parceiros a descreviam, a série mostra como a violência contra mulheres era encarada como um dado do cotidiano, não como sintoma. É uma produção mais seca, quase resignada.
Contudo, ao insistir em abraçar o caos documental do caso real, suspeitos que somem, linhas de investigação que se contradizem, pistas inconclusivas e vários erros policiais, a minissérie termina fragmentada como o próprio processo judicial que retrata.
A fidelidade ao absurdo histórico é brilhante como conceito, mas enfraquece a construção dramática. O espectador sai mais confuso do que satisfeito, não por falta de respostas, mas por falta de prioridade narrativa.
Vale a pena?
“O Monstro de Florença” é uma das produções europeias mais interessantes do ano dentro do true crime. Não busca impacto fácil, foca no desconforto que cresce devagar, como mofo em parede antiga. Mostra que o terror pode ser um homem comum, um vizinho, um primo ou mesmo um sistema inteiro que falha repetidas vezes.
No fim, a pergunta que ecoa não é “quem é o monstro?”, mas “quantos monstros cabem numa mesma história?”.
Se a série não chega a uma conclusão definitiva, talvez seja porque o próprio caso nunca chegou. E porque, no fundo, algumas verdades preferem continuar enterradas sob as colinas perfeitas da Toscana.
*Fernando Martins é jornalista e grande entusiasta de produções televisivas. Criador do Uma Série de Coisas, escreve semanalmente neste espaço. Instagram: @umaseriedecoisas.
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