Vida e obra de artesãos pernambucanos resgatadas em livros
Box com oito volumes traz a história e o legado de oitos artistas locais
Pernambuco, além uma terra de paisagens deslumbrantes e de uma diversidade cultural inquestionável, é o berço de uma riqueza inestimável: sua arte popular. No entanto, muitas das mãos que moldaram essa identidade única, dos mestres artesãos que transformaram barro, madeira e outros materiais em obras de arte, permanecem nas sombras da história.
Para honrar esse legado e garantir que ele não se perca no tempo, oito desses artistas foram resgatados no box de livros “Várias Mãos, uma Cultura – Retratos da Arte Popular Pernambucana”.
“Este projeto é fruto de encontros e afetos, uma homenagem à preservação e celebração de oito mestres artesãos de Pernambuco: Nicola, J.Borges, Cida Lima, Marcos de Sertânia, Maria da Cruz, Marcos de Nuca, Marliete e Nena”, justifica a curadora e idealizadora do projeto Marly Queiroz.
Mais do que uma coleção, o box surge como um portal para o universo desses artesãos populares. Cada livro é uma imersão muito particular na vida e na obra de cada um deles, apresentando sua trajetória, suas inspirações, seu processo criativo e a importância de seu trabalho para a cultura local e nacional.
As páginas, recheadas de fotografias, assinadas por Isabela Cunha, capturam não só os artistas com a mão na massa, mas a textura do barro e da madeira, além do colorido das xilogravuras de J. Borges.
Durante meses, a equipe percorreu estradas, casas e ateliês para escutas e investigações que resultam nas publicações, com design editorial da Zolu Design.
“Essa construção foi feita de encontros e trocas, iniciando com a produção de Camila Bandeira e, aos poucos, outros se uniram, formando uma rede movida pela empatia e pelo desejo de honrar nossos mestres que mantém viva a cultura popular”, explica Marly. “Em cada visita, fomos acolhidos pelos artesãos e envolvidos por seus afetos. São narrativas bordadas de emoção e respeito”.
Com produção executiva da agência de marketing cultural e projetos Proa Cultural, comandada por Camila Bandeira, Julia Almeida e Camila Almeida, os livros contam com textos do jornalista e antropólogo Bruno Albertim.
“Mais que peças de grande aporte estético, esses artistas produzem, na verdade, pedras de assento do imaginário e da personalidade coletiva não apenas de Pernambuco, mas de um Brasil basilar”, diz o antropólogo.
O resgate dessas histórias e obras é fundamental por várias razões. Uma delas é que é uma forma de valorizar o patrimônio artístico popular do artesanato pernambucano.
Esses artesãos, guardiões de técnicas e saberes transmitidos de geração em geração, e suas criações são a expressão de uma identidade cultural que precisa ser preservada. Ao dar a esses artistas o reconhecimento que merecem, fortalece-se as raízes de nossa cultura.
Além disso, ao documentar a vida e a obra desses mestres, inspira-se novas gerações de artistas. Suas histórias de superação, dedicação e paixão pelo ofício podem ser um farol para jovens que desejam seguir o caminho da arte popular. O box de livros é, então, uma fonte de referência e aprendizado, mostrando que é possível viver da arte e perpetuar a tradição.
Por fim, o box também é uma ferramenta de conscientização sobre a importância de consumir e apoiar o artesanato local. Ao conhecer a fundo o trabalho e a história por trás de cada peça, o público é incentivado a valorizar não apenas o objeto, mas também o artista e a cultura que ele representa. É um convite a olhar para o artesanato não como um simples souvenir, mas como uma obra de arte carregada de história e significado.
Confira abaixo os resumos dos livros, escritos pelos organizadores da caixa:
Nicola: um novo barroco brasileiro
Era 18 de janeiro de 1959, quando Jaime Nicola de Oliveira nasceu em Quipapá, na fronteira com Alagoas. Aos 12 anos, já morando no Recife, fixou os olhos no trabalho de um vizinho: talhas de homens subindo em coqueiros, marisqueiros, vaquejadas, pescadores. “Já sabia desenhar, então, por que não fazer os desenhos direto na madeira?
Aquilo foi uma revelação para mim”. Nicola passaria a vender suas talhas na praia e no hotel em Boa Viagem. Os temas regionalistas predominavam até que, confiança adquirida na prática, o artista resolve fazer seu primeiro trabalho religioso. Saíam os temas regionais, entravam figuras arquetípicas do catolicismo brasileiro.
Um dos mestres santeiros do Brasil, Nicola buscava nos rostos da população os traços que acaba por imprimir em figuras de santas ceias, cabeças de Cristo e santos. “Não tenho referências em grandes escultores da arte sacra. Gosto de ver o rosto das pessoas, de observar as fisionomias nas ruas e trazê-las para as figuras”. Seu barroco é novíssimo e, claro, muito brasileiro.
J. Borges: a arte de escrever sobre casas
Numa casinha de reboco de um sítio chamado Piroca, José Francisco Borges rasgou o ventre da mãe. Era o dia 20 de dezembro de 1935. Jornal e cinema, nem pensar. Eletricidade, só no centro da cidade de Bezerros. Festas eram animadas com samba de toada e luz de candeeiro.
Era um tempo, lembrava ele, em que rezadeira era o médico, remédio era chá de planta, e telefone era um grito. As notícias do mundo lhe chegavam pelas rodas de cordel organizadas pelo pai na porta de casa. Só quando completou doze anos, apareceu a escola para o inquieto Borges estudar. Até ali, o menino não sabia ainda ler palavra ou escrever o próprio nome. Depois, o menino não podia ver um pedaço de papel em branco - ou parede sem uso.
“Eu riscava casas abandonadas, até não ter mais espaço” Borges aprendeu a ler e nunca mais voltou à escola. Começou a criar xilogravuras para ilustrar os próprios cordéis. Adulto, tinha já obras no acervo da Biblioteca Nacional de Washington, participou de importantes exposições no Brasil e fora dele.
Montou um centro para sua arte em Bezerros. Ilustrou livros de referências de nomes da literatura ocidental, como o uruguaio Eduardo Galeano e o português Saramago. Morreu, em 26 de julho de 2024, aos 88 anos, de causas naturais. Lúcido e produtivo até pouco tempo antes. Ariano Suassuna dizia: José Francisco Borges – ou, simplesmente, J. Borges – é o maior xilogravurista do Brasil.
Cida Lima: o barro tem cabeça
Nascida no ano de 1968 no sítio de nome Rodrigues, em Belo Jardim, com sete ou oito anos de idade, Cida era já louceira. Sem uso do torno, a comunidade se valia do saber ancestral da louça cabocla, herança remotamente indígena de pegar o barro do tipo tauá – palavra de origem tupi-guarani que significa apenas barro vermelho ou molhado – e, na dança das mãos sobre a matéria, ir lhe dando formas até obter potes e panelas.
“Era os utensílios que a gente usava no dia a dia para tudo”. De pouca roça e pasto raro perto de casa, a louça era também sustento. Pequena, a menina recebia de um avô cego o barro já amassado. Da avó materna, Olívia Maria, os ensinamentos para ir moldando a argila.
Hoje, Cida Lima é reconhecida uma das mestras do barro brasileiro. Suas cabeças, à imagem de ex-votos, às vezes agigantadas e usadas até como bancos ou vasos, fazem sucesso em coleções importantes do país. “A gente só sabe o valor que a gente tem quando vai pro mundo” diz Cida, dona de uma voz agreste, modulada e ciente do barro de si.
Marcos de Sertânia: um inventor do sertão
Filho de seu Severino com dona Maria José Lau, Marcos de Sertânia teve em casa os primeiros contatos com a prática escultórica. Além de utensílios para uso doméstico, a família imprimia na madeira pequenas figuras de bois e animais de pastoreio. Aos 12 anos, vendia esculturas na feira.
Marcos começou a atuar como uma espécie de cronista da madeira. “A gente trabalhava no campo, cuidando de animais e da lavoura. E achava bonita a figura do homem, mesmo na pobreza, a magreza, o jeito de se comportar, de se vestir. Queria passar isso para as figuras.” De tom crítico e observador, ele passaria a dramatizar as agruras do semiárido em figuras humanas longilíneas, alongadas.
Expressionistas nos gestos, conjuntos e personagens de famílias de retirantes: o homem, a mulher, duas crianças e o indefectível cachorro magricela atrás da parentela desassistida. Figura animal, aliás, celebrizada pela literatura de outro nordestino, o alagoano Graciliano Ramos que, com seu Vidas Secas, deu ao Brasil a imagética definitiva de um Nordeste em eterna purgação pelo sol inclemente. Como o velho Graça, Marcos de Sertânia é um dos criadores desse sertão que passaria a morar no imaginário brasileiro.
Maria da Cruz: Maria de Ana das Carrancas
Quem conta a história é a própria Maria da Cruz, filha que herdaria de Ana das Carrancas a perícia com a argila: “Mãe disse que, quando menina, um homem de olhos azuis olhou para ela e falou: Coitada, menina e preta, essa aí não vai dar para nada que preste na vida’. Aquilo doeu muito nela”.
Como resposta silenciosa, Ana teria dito para si mesma: “Meu nome é Ana Leopoldina dos Santos. E eu vou marcar meu nome na história desse lugar”. Adulta e rebatizada com o nome de Ana das Carrancas (1923-2008), sua mãe teve uma trajetória de mais de cinquenta anos celebrada por suas carrancas moldadas no barro extraído do São Francisco. Carrancas, como sabemos, de olhos cegos - numa homenagem declarada ao marido que nascera com a deficiência.
“Quando eu tinha sete anos, ela pegou uma encomenda de quinhentas peças para a praça do porto de Petrolina. Eu fazia a parte da barquinha; e ela, a cabeça e colocava a cobertura. Aí, me escondi e fiz uma peça bem bonitinha. Fiquei com medo de ela não gostar, mas entreguei e os olhos dela brilharam. Ela disse assim: ‘Agora, eu tenho quem me ajude. Senti que os olhos dela quiseram lacrimejar”.
Maria de Ana (de alguma forma, também, Maria das Carrancas) cria cabeças com furos que não chegam a atravessar a argila. Na verdade, cavidades arredondadas. “Faço o que é meu, mas tenho a história da minha mãe para preservar”,
Marcos de Nuca: os leões de pai pra filho
Seu pai foi um dos ícones da cultura popular pernambucana. Manoel Borges da Silva, conhecido como Mestre Nuca, havia quebrado a tradição em Tracunhaém de “fazer o barro virar apenas santo ou panela”. E fundado sua estética original com a série de leões longilíneos de tamanhos variados e volumetria intrigante.
Desde que sofreu um AVC em 2005 até sua morte em 2014, Nuca não mais trabalhava. Os filhos Marcos, Guilherme e Maria Lúcia assumiam precocemente o peso da herança. “A gente teve que fazer o trabalho que pai já não podia fazer”, lembra Marcos, o primogênito.
“Faço as minhas variações nas figuras dos leões, mudo algumas expressões, a postura deles, mas é muito importante manter a criação de meu pai, a obra que ele criou com a ajuda da minha mãe”. Em vez de Marcos Borges da Silva, o filho passou a ser conhecido apenas, como era de se esperar, Marcos de Nuca. Nada mais justo.
Marliete Rodrigues: a grandeza das pequenas coisas
O lugar em que Marliete veio ao mundo é destino. Sobrinha de Manoel Eudócio, vizinha de Vitalino, uma entre os onze rebentos de Zé Caboclo com dona Celestina, Marliete Rodrigues abriu os olhos num Alto do Moura já em reconhecimento como um dos principais centros de arte figurativa das Américas.
Quando viu o mundo, a menina o viu cercado de barro. De um barro já de colorido vivíssimo. Quando começou, fazia em grandes dimensões as figuras clássicas, como os personagens do maracatu, criadas pelo pai Zé Caboclo. Nos anos 1980, Socorro, a irmã mais velha, tinha começado a fazer peças em miniatura.
Curiosa, Marliete revelou uma habilidade incomum nas dimensões diminutas - cenas inteiras que cabem no meio da palma de uma mão. Cronista do afeto e da vida familiar, Marliete se notabilizou pela perícia com que faz cenas do cotidiano, principalmente de crianças em torno da figura da avó.
Reconhecida pela perícia de suas criações, os personagens de Marliete impressionam pela força das expressões faciais. São avós, meninos e meninas que “falam” com seus pequenos olhos vívidos de cerâmica. “Gosto muito de observar os rostos das pessoas. No começo, fazia uma expressão muito séria, uma boca travada. Com o tempo, senti vontade de mostrar alegria nas bocas e no olhar” conta a artista, ciente da grandeza das pequenas coisas.
Nena: um filho do barro
Quando menino, Nena morava com os avós no bairro do Mauriti, então um proeminente centro oleiro no centro do Cabo. Ajudava na produção dos mais velhos, raspando tijolos. Aos onze, começou a moldar suas quartinhas. “A cerâmica era uma coisa feita para o povo que vivia nos engenhos, que nem tinha geladeira e precisava de pote para água. Não tinha a valorização de hoje”. Nena largou o colégio se assumiu oleiro.
“Parei de estudar para ajudar a família”. Na época, ele tinha o afamado Mestre Celé como referência. “E se Celé foi meu pai no barro, meu padrinho foi o projeto Imaginário Pernambucano, da Universidade Federal de Pernambuco”, ele diz. “Nos anos 1990, a cerâmica estava quase morrendo. Celé engajou todo mundo nesse projeto. Foi ele quem convenceu a ouvir os professores para modernizar nossa cerâmica”.
As inovações técnicas da universidade trouxeram não apenas aportes estéticos, mas pragmatismo na produção. A queima passou a ter precisão. As peças passaram a ser vitrificadas com esmalte cerâmico. Sua imaginação se soltou: uma de suas criações recorrentes traz formas estelares inspiradas nos ouriços do Cabo de Santo Agostinho. Imaginosa, a obra de Nena confirma como o contemporâneo aduba a tradição.
Serviço
Box de livros: Várias Mãos, uma Cultura – Retratos da Arte Popular Pernambucana
Produção executiva: Proa Cultural
Preço: R$ 150

