Conceito "upcycling" traz para a moda o reaproveitamento artesanal de peças
Processo desconstrói um objeto para criar algo novo, como utilizar retalhos para fazer uma roupa
Já ouviu falar do conceito"upcycling"? É um processo que transforma resíduos ou produtos descartáveis em um novo material sem usar energia (eis a diferença para a reciclagem), agregando valor e qualidade. Em outras palavras, é um reaproveitamento artesanal, na linha do faça-você-mesmo, que desconstrói o objeto para criar algo novo.
No caso da moda, especificamente, é a arte de fazer uma calça virar um vestido, por exemplo, ou pegar retalhos e restos de matérias-primas (como aviamentos) de confecções e indústrias têxteis e produzir roupas. O meio-ambiente agradece, e muito! A quantidade de aterros lotados de tecidos, linhas e aviamentos e espalhados pelo mundo é gigantesca.
Não somente por causa disso, o consumo tem sido repensado e puxado para baixo. Afinal, das sete bilhões de pessoas existentes no mundo, 20% consome 80% dos recursos, enquanto a maioria vive - quer dizer, sobrevive - com muitas restrições, segundo dados presentes no livro "Moda com propósito" (editora Companhia das Letras, R$ 416 páginas, R$ 39,90), de André Carvalhal. Para produzir uma peça de jeans, por exemplo, são gastos muitos litros de água. Um bilhão de pessoas em todo o mundo sofrem com a escassez desse recurso natural.
O autor, que é coordenador e professor de moda no Instituto Europeo di Design (IED) do Rio de Janeiro, propõe um exercício interessante para refletirmos sobre o consumo de moda e passarmos do fast fashion para o slow fashion o mais rápido possível: "Que tal abrir a porta do seu armário? Olhe para tudo o que está lá dentro. Escolha dez peças que tenham marcado diferentes épocas da sua vida. Olhe uma a uma, pense em quando as comprou e se pergunte: essa peça ainda representa você? Ou é apego a quem você era? Se não representa, por que ainda a mantém? Doe, repagine, empreste!", sugere Carvalhal.
E pensar que na década de 1930 as mulheres tinham em média nove roupas. Atualmente, segundo o livro, compramos em média 64 peças por ano! E o pior: uma pesquisa realizada pela Threadflip descobriu que usamos apenas metade do que está no armário.
Depois dos argumentos ditos acima, talvez você esteja afim de entrar nessa onda upcycling. A estilista recifense Amanda Brindeiro faz peças sob medida a partir do que ela chama de uma "montagem de tecido". "Faço uma montagem de cores de acordo com o gosto de cada cliente e então começo a emendar os retalhos e costurá-los", explica Amanda, da marca Brinda.
Algumas vezes, a montagem desse quebra-cabeças fashion se inicia sem que a estilista saiba ao certo qual será o modelo final. "Durante a montagem a ideia chega, sempre pensando no estilo da cliente. Quando decido, termino a montagem e modelo a peça", revela Amanda, que recebe os retalhos mediante doação de costureiras e pequenas confecções.
Também foi a partir de sobras de materiais que nasceu o Estúdio Laia, marca experimental da dupla de estudantes de design Marcela Lobo e Luiza Pinto. As duas reutilizam o acrílico descartado pelo Fab Lab Recife, um laboratório de prototipagem em 3D e corte a laser, para criar acessórios de pegada contemporânea e minimalista, além de sustentáveis e artesanais. As peças da primeira coleção da grife, "Contraste", concebida ano passado, traz curvas em desacordo com as quinas; e os tons transparentes acompanhando a textura leitosa.
Outra marca, Ourela, de Mariana Monteiro, nasceu como ateliê de upcycling, fazendo bijus a partir de resíduos de plástico de vinil, mais conhecido como PS. Atualmente, em vez de focar no produto final, a designer presta serviço para outras marcas. "Faço uma triagem de peças descartadas a fim de encaminhar para iniciativas de upcycling", conta Mariana.
Além disso, ela tem uma parceria com o ateliê Aparecida, para quem cria o design. Criadora do Mercado Ourela, ela cita o Projeto Alinhavo como outra iniciativa local também voltada à transformação de roupas usadas e costura de retalhos.
Eles estão, inclusive, ministrando uma oficina de upcycling neste sábado, das 10h às 16h, na Etiqueta Verde, no Espinheiro. Já no dia 2 de julho, o Mercado Ourela faz evento das 15h às 19h, no Marco da Moda, na Rua da Moeda.
Uma prática em disseminação
Pelo Brasil são muitas as iniciativas de difundir a moda upcycling, tanto para o empoderamento do indivíduo na capacidade de transformar ele mesmo sua própria roupa, quanto para os interessados em fazer da atividade uma fonte de renda.
A paulistana Sigbol Fashion, que atua na comercialização de cursos de moda, e possui 19 unidades espalhadas pela região Sudeste do País, além do Distrito Federal, está no mercado desde a década de 1970. "Nossa proposta é evitar o descarte, economizar, não jogar nada fora", diz o diretor da empresa, Aluizio Alberto de Freitas. Ele conta que, com a crise, a procura por curso de ajustes e reformas se acentuou bastante. "A cultura de reutilizar sempre existiu, mas tem se acentuado nos últimos anos e não se trata de uma coisa passageira. Veio para ficar", pondera Aluizio.
A grife carioca Farm criou o projeto re-FARM, voltado justamente para o reaproveitamento de matéria-prima. A ideia surgiu ano passado, quando foi lançada uma coleção de bodies. Agora surge uma linha de jaquetas bomber feita através da reutilização de tecidos das marcas do grupo Soma, que inclui ainda a Animale, A.Brand, FYI, Foxton e Fábula. Nas lojas a partir de julho. “Esse projeto é a nossa oportunidade de trazer um monte de inovações ligadas a novos comportamentos de consumo. Esse primeiro passo não é isolado, mas acompanha iniciativas internas e externas em relação à gestão de resíduos”, conta Taciana Abreu, head de comunicação e marketing da Farm.
Consultora e produtora, a carioca Gabriela Mazepa, formada há dez anos numa faculdade de arte com foco em materiais têxteis, na França, sempre aprendeu a pensar o tecido. "Comecei a trabalhar com a roupa das pessoas, mas com um foco bem afetivo, contando a história que tinha por trás das vestimentas. Depois é que passei a desconstruir as peças para fazer outras novas", recorda Gabriela.
Essa atitude veio de um pensamento que já existia na Europa há uma década. "Se pensava muito na grande produção, no desperdício e numa maneira de fazer uma moda mais justa em todos os processos da cadeia produtiva. Não era só a roupa de um e de outro que estava sobrando no guarda-roupa, mas toneladas de grandes marcas. Só no Bom Retiro (polo de confecções de São Paulo) temos 12 toneladas de resíduos têxteis jogados fora todos os dias", conta.
E isso sem falar na maneira errada como esse resíduo é descartado: aterrado ou incinerado. Assim nasceu a Re-Roupa, uma mistura de marca com empresa de consultoria. "É uma vitrine para falar desse problema na cadeia de moda. O ideal é pensar todo o processo produtivo", diz Gabriela, que estará no Recife no próximo dia 19 de agosto. Para ela, ainda não temos uma cultura de usar roupa reaproveitada. Não se trata, porém, de preconceito. É simplesmente cultural. "Temos roupas baratas e novas à disposição e é isso o que foi difundido como ideal de consumo. O upcycling ainda alcança poucas pessoas", lamenta Gabriela. Está na hora de mudar essa história.

