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Crítica: 'Nada a perder' mostra força autoral de Jeff Lemire

Quadrinista canadense apresenta delicada história sobre machismo e banalização da violência na HQ 'Nada a perder', lançado no Brasil pela Editora Nemo

Quadrinista Jeff LemireQuadrinista Jeff Lemire - Foto: Divulgação

A força da HQ "Nada a perder" (Editora Nemo) parece estar no que o autor, o canadense Jeff Lemire, deixa fora do quadro, em silêncio, habitando de forma incômoda na imaginação do leitor. A história é sobre Derek, ex-ídolo do hóquei que retorna à pequena cidade onde nasceu depois de ter sua carreira destruída em uma tragédia. É através desse personagem que o autor parece sugerir discussões mais amplas sobre diferentes tipos de abusos, a perpetuação do machismo, a banalização da violência no cotidiano.

A história de Derek é revelada aos poucos, mostrando primeiro sua melancolia silenciosa e crueldade chocante para em seguida sugerir os eventos que moldaram esse perfil trágico. Derek quase não fala, quer apenas beber em bares sem ser incomodado. A violência é a resposta imediata desse homem embrutecido diante das inconstâncias da vida. A paisagem em volta parece de alguma forma indicar as emoções do protagonista: uma cidade coberta de neve, reflexos de uma frieza interna e insuportável.

Ao ser reconhecido em uma dessas noites de reclusão, na mesa de um bar, Derek ignora os fãs, que o provocam e em seguida apanham. É quando começamos a entender que a violência é sua linguagem natural, uma resposta que lhe foi ensinada, desde sua infância, como mecanismo de afirmação. Derek parece condenado a repetir os erros de um pai bêbado e violento, machista e cruel. A volta de sua irmã, que sumiu por anos, faz o homem perceber que certos eventos de décadas atrás foram fundamentais para fazer de sua agressividade o comportamento padrão.

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"Nada a perder" se torna ainda mais intrigante quando coloca esse protagonista detestável diante de perguntas difíceis e dolorosas, forçando-o a repensar os modos que adquiriu ao longo de seu processo de amadurecimento. A história sobre sua irmã, que também foge de um passado problemático, potencializa ainda mais os dramas de Derek. O histórico de violência doméstica, os abusos cometidos no cotidiano, a forma como a agressão se torna um hábito - esses temas urgentes e contemporâneos são repassados através de uma narrativa simples, direta e honesta.
 

Autor

Este é o segundo quadrinho de Jeff Lemire lançado no Brasil neste ano, depois do ótimo "Black hammer - origens secretas" (editora Intrínseca). Também foram lançados recentemente os interessantes "O soldador subaquático" (2016) e "Condado Essex" (2017) - ambos através da editora Mino -, que aprofundam o estilo delicado e os traços expressivos do autor.

Esses quatro quadrinhos parecem comprovar não apenas a rapidez (originalmente, no mercado estrangeiro, essas HQs também foram lançadas em intervalos curtos) como também a eficiência e a potência narrativa do canadense, que tem no currículo obras de perfil autoral, em que experimenta temas mais delicados da vida contemporânea, e outras de super-heróis, como Liga da Justiça, X-Men e Novos Titãs.

Cotação: ótimo

Serviço:
"Nada a perder", de Jeff Lemire
Editora Nemo, 272 páginas
Preço médio: R$ 64,90

 

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